Brasil não possui atraso tecnológico energético, diz especialista
20 de julho de 2006O professor Luiz Pinguelli Rosa, secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas e ex-presidente da Eletrobrás, é o coordenador do Programa de Planejamento Energético da Coppe, a Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A DW-WORLD conversou com ele para saber mais sobre a questão da energia, a integração energética da América Latina e o programa brasileiro de enriquecimento de urânio.
DW-WORLD: Professor Pinguelli, a questão energética tornou-se um tema central da agenda mundial, como no caso do recente encontro do G8 em São Petersburgo. Se admitirmos que temas energéticos estão hoje nas manchetes de jornais bem mais do que antigamente, por que a mudança de paradigma em relação à energia?
Luiz Pinguelli Rosa: Três fatores contribuíram para este fato. Primeiramente, a subida do preço do petróleo, que chegou a 10 dólares por barril na década de 90 e agora ultrapassou os 70 dólares. Outro fator é o efeito estufa, provocado pela emissão de gases tóxicos provenientes do uso de combustíveis fósseis.
Como último fator, devemos mencionar a instabilidade geopolítica do mundo atual: o terrorismo, a ocupação do Iraque e do Afeganistão, a crise no Oriente Médio, a questão nuclear iraniana e os mísseis da Coréia do Norte, tudo isso agrava a segurança energética.
O senhor esteve recentemente no Chile participando do encontro sobre Segurança Energética promovido pela Universidade La República e a Embaixada da França. Quais os temas abordados neste encontro? A energia também é tema central da agenda latino-americana?
No caso da América Latina, somos um continente com imensos recursos hidrelétricos subutilizados, temos dois grandes produtores de petróleo, o México e a Venezuela, temos o gás natural da Bolívia e um grande mercado consumidor que é o Brasil.
No encontro no Chile, as discussões giraram em torno de uma maior integração energética da América Latina, o que é um tanto paradoxal, se levarmos em consideração a crise gerada pela nacionalização do gás natural e do petróleo na Bolívia – uma decisão aceita pelo governo brasileiro, que reduziu a discussão à mera questão de preço do gás natural.
A Radio Universidad de Chile comentou a unânime constatação dos participantes do encontro sobre a crescente tendência de intervenção governamental nos mercados energéticos, como no caso da Rússia, Bolívia e Venezuela, que reassumem o controle de seus hidrocarbonetos. Como o senhor observa este fenômeno?
Sofremos com o problema da liberalização do setor energético devido a privatizações mal feitas. Não houve investimento dos grupos estrangeiros na expansão da geração e da transmissão. No caso do Brasil, isto causou, em 2001, um racionamento de energia elétrica que ficou famoso no mundo inteiro. Hoje, o governo brasileiro suspendeu a privatização das empresas elétricas estatais. No caso da Venezuela, trata-se do petróleo e, no da Bolívia, do gás natural.
Acredito que atualmente vivemos uma situação oriunda do excesso de liberalização econômica que não deu certo e talvez agora se caia em um excesso de intervenção estatal. É preciso chegar a um meio-termo.
Qual a melhor forma de planejamento energético? Uma visão da energia como importante fator para o progresso coletivo, o que justificaria uma intervenção estatal, ou uma visão comercial, que possivelmente evitaria sua utilização como arma estratégica governamental?
As duas coisas. A energia tem um lado comercial de oferta e procura, mas também um lado de serviço público, ou seja, não se pode deixar um país sem energia. Daí a energia ser uma concessão.
Em relação ao petróleo, trata-se da necessidade de mobilidade, então é natural que o Estado tenha um papel importante, embora também não se possa negar o mercado como regulador de preço e disponibilidade. É preciso julgar com as duas faces da moeda, o mercado e o Estado.
Leia mais sobre a integração energética na América Latina
Recentemente, Brasil e Uruguai assinaram um acordo de cooperação energética. Que outros acordos existem entre os países latino-americanos em matéria de energia?
O maior exemplo de cooperação energética é entre o Brasil e o Paraguai na construção da hidrelétrica de Itaipu, que foi a maior hidrelétrica do mundo. Como o consumo paraguaio é pequeno, o Brasil compra 95% da energia da usina, mas ela é binacional e bem-sucedida.
Há também o comércio de gás natural da Bolívia com o Brasil e a Argentina. Agora surgiu a hipótese de construção de um gasoduto que poderia vir desde a Venezuela passando pelo Brasil e, eventualmente, ligando-se à Bolívia e ao Paraguai. Já há questões concretas de integração energética na América do Sul.
Existe a possibilidade de existir na América do Sul algo semelhante à Carta Européia de Energia, que regulamenta os aspectos de cooperação internacional no setor energético?
Diferente da América do Sul, a história econômica da União Européia começou com a cooperação energética, inicialmente com o carvão e o aço e depois com a Euratom na área de energia nuclear.
Não é o nosso caso, mas, de certo modo, o Mercosul já é um ponto de apoio para fazer, também na América do Sul, uma regra geral para a integração e cooperação energética. E a incorporação da Venezuela, como grande produtor de petróleo, nos dá a esperança de que algo neste sentido irá ocorrer por aqui.
Em tempos de crise nuclear iraniana, o enriquecimento de urânio realizado pelo Brasil em Resende, em maio último, foi motivo de vários comentários na imprensa internacional. Qual a intenção do Brasil com este enriquecimento?
Há muitos anos, existiu um debate acerca de um projeto do governo militar para testes de dispositivos nucleares na Serra do Cachimbo, onde a Aeronáutica possuía uma base aérea. Mas não há dúvidas de que este projeto foi encerrado e hoje não existe nenhuma intenção do governo brasileiro de utilizar tal energia para fins bélicos. O urânio enriquecido no Brasil será utilizado para os dois reatores existentes no país.
Brasil e Argentina são os únicos países sul-americanos a possuírem instalações nucleares, existindo até uma agência mútua de controle entre os dois países ligada à AIEA. Comentou-se na imprensa européia que, por interesses comerciais, o Brasil não permitiu aos inspetores da ONU o completo acesso às centrífugas de Resende. Este enriquecimento não poderia tornar-se um fator de desequilíbrio na região?
Não, isso é um completo equívoco. Além do tratado com a Argentina, a partir do qual foi criada a Agência Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), sob supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), o Brasil ratificou também o Tratado de Tlatelolco de desnuclearização da América Latina. Além disso, o Brasil é signatário do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e tem estipulada na sua Constituição a proibição de armas nucleares.
O que aconteceu foi que algumas das grandes potências nucleares (EUA, França, Reino Unido, China, Rússia, Israel, Índia, Paquistão e talvez a Coréia do Norte) tomaram medidas junto ao TNP para incluir inspeções adicionais ao tratado, com as quais o Brasil não concordou.
Os reais infratores do TNP foram as grandes potências, que não respeitaram a cláusula sexta do tratado, que prevê passos concretos para o desarmamento nuclear. O Brasil cumpre esse tratado, mas não concordou com inspeções além das já estipuladas, o que seria um abuso.
Se tomarmos como parâmetro o número de patentes depositadas na OMPI pelos países que compõem o chamado grupo BRIC de países emergentes (Brasil, Rússia, Índia e China), o Brasil é o mais atrasado tecnologicamente e o único a não possuir armas nucleares. No caso de uma ruptura tecnológica no país, como deve ser encaminhada a política energética?
O atraso tecnológico brasileiro não se aplica ao setor energético, onde o Brasil dispõe de uma vantagem tecnológica através da Petrobrás, que possui uma tecnologia nacional de exploração de petróleo em águas profundas e que tornou o país independente de importações.
Além disso, o Brasil possui uma tecnologia de construção de hidrelétricas de grande porte. Também devemos acrescentar o sucesso do programa de substituição da gasolina pelo álcool, outro desenvolvimento tecnológico brasileiro. Há gargalos e grandes problemas, mas não na área energética.