Marina Silva:
29 de outubro de 2009Deutsche Welle: O Brasil vem se tornando cada vez mais importante no debate global sobre biodiversidade e mudanças climáticas, e há uma expectativa muito grande da comunidade internacional de que o país assuma uma posição de liderança. O que de fato o Brasil tem condições de fazer?
Marina Silva: Por ser um país com uma base de recursos naturais incomparavelmente maior do que qualquer outro país emergente, o Brasil tem muitas possibilidades de liderar um duplo processo em Copenhague. Primeiro junto aos países emergentes, dentro do próprio G77 [grupo dos países em desenvolvimento], e segundo junto aos desenvolvidos. Com os emergentes porque o Brasil tem um plano de combate ao desmatamento que começou a ser implantado em 2004 e conseguiu resultados altamente significativos. Temos um sistema de monitoramento por satélite que permite saber se o que se diz que está sendo reduzido no desmatamento de fato é verdade. Segundo porque o Brasil tem uma matriz energética renovável 45% limpa e tem muitas possibilidades de ampliar essa matriz com biomassa, energia eólica, solar, além de ter 30 anos de pesquisa e produção de biocombustíveis. Então, o Brasil pode sim ir para Copenhague com uma meta global, não só de redução do desmatamento, mas também de redução de emissão [de gases do efeito estufa] na indústria, na agricultura e no setor de energia.
E como seria a liderança do Brasil junto aos países desenvolvidos?
Se um país em desenvolvimento, que não tem tantos recursos financeiros nem capacidade tecnológica é capaz de se comprometer com metas, por que não aqueles que têm emissões históricas elevadíssimas, emissões atuais insuportáveis e, ao mesmo tempo, têm tecnologia e conhecimento? Então o Brasil tem que liderar duplamente esse processo, tanto junto aos seus pares, os emergentes, e junto aos países desenvolvidos a fim de que eles se comprometam com metas, e isso que estou dizendo não é nenhuma ficção, isso é factível.
O que deve mudar na prática para o Brasil a partir da Conferência Mundial do Clima, em dezembro, em Copenhague?
Os processos aos quais me referi já estão em curso, então é uma questão de aprofundá-los e não cometer erros como, por exemplo, o que aconteceu no novo Plano Decenal de Expansão de Energia, em que se valorizou sobremaneira o uso de combustíveis fósseis, tanto diesel quanto carvão. Além dos investimentos que precisam ser feitos para que as energias limpas como eólica, solar e biomassa possam ser priorizadas e, com isso, baratear custos e aumentar a contribuição dessas fontes. E também investir na agricultura, utilizando as novas práticas e tecnologias já disponibilizadas pela Embrapa para que se diminua cada vez mais desmatamento, mas também as emissões de CO2 em função, sobretudo, da pecuária.
O Fundo Amazônia, criado em julho deste ano pelo Governo Federal, pretende arrecadar 21 bilhões de dólares no exterior para reduzir o desmatamento na Amazônia. O problema da floresta é dinheiro?
O problema da floresta não pode ser reduzido a apenas um aspecto, é uma questão complexa. Todos os países que têm floresta tropical precisam tomar a decisão de preservar suas florestas. O Brasil tem 60% ainda de cobertura vegetal, e a maior parte na Amazônia, que já perdeu cerca de 18% dessa cobertura vegetal. No entanto, é possível preservar, desde que se façam os investimentos certos. Por isso recursos são importantes, mas também é fundamental que se tenha um modelo de desenvolvimento que mude o foco da economia. Antigamente, a valorização era pela terra nua, hoje, no meu entendimento, a valorização deve se dar pela floresta em pé.
E o que o fundo pode proporcionar de mudança daqui para frente na realidade da Amazônia?
Você pode apostar nos modelos intensivos de agricultura, evitando a extensiva, apostar em infraestrutura que leve em consideração a capacidade dos ecossistemas, em atividades econômicas como o turismo, que pode ser uma fonte de riqueza para a região e tantas outras que precisarão de recursos. O importante é que o Brasil já começou esse processo, sobretudo na redução do desmatamento, com recursos próprios. O adicional seria o previsto na própria convenção do clima, em que, para mudar o modelo de desenvolvimento, os países emergentes precisarão de transferência de tecnologia e de recursos.
Com o fundo, o Brasil deve assumir metas de redução de desmatamento. O que o país precisará fazer, e de que precisará abrir mão, para cumprir essas metas?
Não é uma questão de abrir mão, o Brasil vai ter que começar a combater a ilegalidade. Não oferecer crédito para os ilegais, não permitir que a legislação ambiental seja atropelada, como estão tentando fazer no Congresso Nacional. Não se pode reivindicar a continuação do que é ilegal. Temos é que reivindicar os investimentos e incentivos necessários para alcançar a nossa meta de redução de desmatamento e emissão, sem os efeitos indesejáveis que essa redução provoca.
Que efeitos são esses?
Os efeitos indesejáveis são as pessoas não terem emprego nem condições de vida digna. Mas a prática dos que estão trabalhando corretamente já indica que, quando você usa as novas tecnologias e respeita a legislação ambiental, produz mais e gera mais empregos. Em uma fazenda certificada, hoje, que respeita as áreas de preservação permanente, se produz um emprego a cada 90 hectares. Nas fazendas tradicionais que operam da forma predatória, a proporção é de um emprego a cada 400 hectares. Logo, vamos ter que investir em tecnologia e conhecimento, e essas tecnologias já estão disponíveis, basta implantá-las, ganhar eficiência econômica, competitividade e proteção do meio ambiente.
Brasil e Europa têm posições diferentes em relação a alguns temas. Por exemplo, a União Europeia é crítica ao uso de biocombustíveis e de biomassa por entender que eles têm um custo ambiental alto. Qual é a sua posição?
Os biocombustiveis no Brasil podem ser produzidos sem custo ambiental. O zoneamento agrícola que foi feito recentemente – e que eu espero que seja implementado, cumprido e que se tenha uma lei que dê viabilidade legal a ele no Congresso – estabeleceu que não se produzirá cana-de-açúcar nem na Amazônia, nem no Pantanal, e estabelece as áreas prioritárias que podem ser utilizadas. Dentro do Brasil, diferente da Europa, temos 350 milhões de área agricultável, com 51 milhões em repouso.
Significa que biocombustíveis e florestas podem conviver pacificamente?
O país pode produzir sem avançar sobre floresta. Basta observar a capacidade de suporte dos ecossistemas, não ter a pretensão de ser a Opep dos biocombustíveis, e ao mesmo tempo respeitar a legislação. Só vai produzir aquilo que é possível, sem comprometer meio-ambiente e segurança alimentar. Não pode extrapolar esses critérios. E isso deve ser válido para todo e qualquer país, inclusive para os que produzem de fontes mais caras, como o milho e outros cultivos.
A senhora concorda com a forma como o governo está conduzindo as questões de energias renováveis, mudanças climáticas e biodiversidade no contexto internacional?
As questões ligadas a biodiversidade já estavam encaminhadas quando eu saí do governo, já havíamos realizado a 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Biodiversidade em Curitiba, e eu tive a felicidade de presidir o processo durante dois anos, fomos capazes de aprovar o mapa dos biomas brasileiros, as áreas prioritárias para conservação da biodiversidade, criamos o Instituto Chico Mendes, a lei de gestão de florestas públicas, então tivemos muitos avanços anteriores. Obviamente esses avanços têm que ser implementados e aprofundados.
E quais são as perspectivas para as novas ações?
Temos alguns retrocessos à vista. A aprovação da medida provisória que transferiu 67 milhões de hectares para proprietários particulares sem critério já demonstra que temos agora um processo de desmatamento dentro de terras públicas em função dessa MP. Algumas tentativas de flexibilização da legislação ambiental, como agora está acontecendo na Câmara dos Deputados, vão exigir do governo muito mais do que uma crítica isolada do Ministério do Meio Ambiente. Tem que ser uma ação de governo para evitar que a bancada ruralista passe por cima de 20 anos de legislação infraconstitucional que tem se constituído na base de proteção da biodiversidade e dos recursos naturais brasileiros. Há, o tempo todo, essa tensão dentro do governo, em que os setores mais ligados à agenda desenvolvimentista tentam atropelar a agenda do desenvolvimento sustentável. Então há sempre essa possibilidade de retrocesso. Mas o ministro [Carlos] Minc tem se esforçado para que possamos ir com metas para Copenhague.
A sua candidatura à presidência nas próximas eleições é tida como muito provável. Como a senhora pretende lidar com os acordos internacionais para sustentabilidade e preservação do meio ambiente na campanha e, se eleita, na presidência?
Essa questão da candidatura será uma definição em 2010, obviamente não vou falar como candidata, porque a decisão ainda não foi tomada. O que eu posso dizer é o que é válido para o Brasil, independentemente de ser esse ou aquele presidente. O Brasil tem que apostar firmemente na mudança do modelo de desenvolvimento, e reúne todas as condições para ser o país a dar o primeiro passo na direção de uma economia descarbonizada no século 21. Ele tem recursos naturais e uma base de conhecimento tecnológica razoável, pode desenvolver uma matriz energética limpa e tem terras agricultáveis em quantidade necessária para continuar o nosso desenvolvimento sem prejudicar o meio ambiente. Essas são vantagens que outros países, ainda que tenham dinheiro e conhecimento, não têm.
Senadora verde Marina Silva foi ministra brasileira do Meio Ambiente e é possível candidata à presidência do Brasil em 2010.
Autora: Francis França
Revisão: Augusto Valente