Brasil quer dinheiro dos EUA para preservar Amazônia
19 de fevereiro de 2021Em uma reunião com o representante para assuntos de clima do governo americano, John Kerry, membros do governo do presidente Jair Bolsonaro endereçaram um recado aos Estados Unidos: o Brasil está disposto a combater o desmatamento e queimadas, especialmente na Amazônia, mas precisa de apoio financeiro internacional para cumprir metas.
O assunto foi tratado num encontro virtual na última quarta-feira (17/02). Além de Kerry, participaram da reunião os ministros das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, e do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Segundo apurou o jornal O Estado de S. Paulo, o governo Bolsonaro argumentou que o Brasil vem se comprometendo a enfrentar as mudanças climáticas no âmbito do Acordo de Paris, mas não vem recebendo contrapartidas financeiras suficientes. De acordo com a publicação, uma fonte do governo resumiu os argumentos apresentados na conversa como "a gente faz, mas vocês vão ter de pagar".
Araújo e Salles mencionaram o encontro no Twitter. O ministro do Meio Ambiente classificou o encontro com uma "excelente reunião" e disse que o Brasil pretende negociar com os americanos questões envolvendo créditos de carbono – mecanismo por meio do qual países ou empresas que poluem podem comprar créditos de atores que preservam florestas como forma compensar suas emissões.
Já Araújo foi mais discreto, e reproduziu uma nota do Itamaraty que apontou que no encontro "foram examinadas possibilidades de cooperação e diálogo entre o Brasil e os EUA na área de mudança do clima e de combate ao desmatamento".
O americano Kerry, por sua vez, divulgou uma mensagem diplomática um dia depois, afirmando que "enfrentar a crise climática requer o tipo de grandes medidas que só podem ser alcançadas por meio de parcerias globais" e que teve uma "boa conversa" sobre "cooperação climática, liderança do Brasil e crescimento econômico sustentável" com Araújo e Salles.
Dúvidas sobre a postura do Brasil
Apesar de toda a simpatia exibida pelos brasileiros, há dúvidas sobre o grau de seriedade do governo Bolsonaro na elaboração de um plano de preservação financiado por atores estrangeiros.
Segundo o jornalista Jamil Chade, que cobre diplomacia internacional, técnicos do governo Joe Biden adotaram cautela com as promessas brasileiras e "não se deixaram convencer com a versão do Brasil de que o governo de Jair Bolsonaro está lidando de forma eficiente com o desmatamento no país".
"Em Washington, os argumentos foram considerados como 'insuficientes', inclusive sobre as metas do Brasil para atingir seus compromissos no Acordo de Paris", apontou o jornalista em seu blog.
Histórico de conflitos
Durante a campanha eleitoral dos EUA no ano passado, o então candidato Biden, durante um debate com o republicano Donald Trump, citou a questão ambiental no Brasil e disse que contemplava organizar um fundo internacional de 20 bilhões de dólares (R$ 108,4 bilhões) para ajudar o país sul-americano a proteger a Amazônia. No entanto, Biden advertiu que, se mesmo assim os brasileiros persistissem com o desmatamento, o Brasil poderia vir a sofrer consequências econômicas, sinalizando possíveis retaliações ou sanções. "Parem de destruir a floresta. E, se vocês não pararem, irão enfrentar consequências econômicas significativas", disse Biden.
À época, o governo Bolsonaro reagiu imediatamente. "O que alguns ainda não entenderam é que o Brasil mudou. Hoje, seu presidente, diferentemente da esquerda, não mais aceita subornos, criminosas demarcações ou infundadas ameaças", escreveu Bolsonaro logo depois do debate. "Nossa soberania é inegociável", completou o mandatário, um fã declarado de Trump e que torceu abertamente pela reeleição do republicano.
Numa entrevista publicada no início de novembro, Biden voltou a mencionar a Amazônia e a possibilidade de pressionar o Brasil economicamente para garantir proteção da floresta. Biden tem colocado a agenda ambiental como uma das prioridades do seu governo. Nesta sexta-feira, seu país voltou oficialmente ao Acordo Climático de Paris.
Em novembro, Bolsonaro chegou a insinuar que poderia ter que recorrer à força militar para driblar eventuais sanções econômicas impostas por Biden em resposta ao desmatamento desenfreado da Amazônia.
Impasse com outros doadores
A reunião desta quarta-feira sinaliza que, por enquanto, o governo brasileiro quer evitar voltar a antagonizar com Biden sobre clima e preservação do meio ambiente. Mas o histórico do governo brasileiro na área indica que envio de recursos financeiros em troca de preservação não são uma garantia de uma relacionamento harmonioso ou de que o Brasil venha a aceitar cobranças em troca de dinheiro.
A partir de 2019, o governo brasileiro prejudicou de maneira ativa a continuidade do Fundo Amazônia, programa bilionário de proteção à Floresta Amazônica que conta com doações da Noruega e da Alemanha.
No momento, o mecanismo atravessa sua maior crise desde a criação em 2008. O impasse começou no primeiro semestre de 2019, quando o ministro Ricardo Salles promoveu uma série de mudanças unilaterais na gestão do programa, incluindo a extinção de dois comitês, o que contrariou os alemães e os noruegueses, que não foram consultados previamente sobre a medida.
Além disso, Salles pretendia usar recursos do fundo para indenizar proprietários que vivem em áreas incluídas em unidades de conservação da Amazônia, o que foi rejeitado pelos europeus. Berlim e Oslo também demonstraram contrariedade com as insinuações – sem provas – do governo Bolsonaro de que há indícios de irregularidades em contratos do fundo.
Como resultado, o fundo segue paralisado, sem previsão de contemplar novos programas. Apenas iniciativas em andamento continuam recebendo financiamento. A Noruega era a maior doadora do fundo, tendo repassado 3,1 bilhões de reais para a iniciativa em pouco mais de dez anos. A Alemanha, por sua vez, doou cerca de 200 milhões de reais.
Ainda em 2019, a Noruega suspendeu novos repasses. A Alemanha, por sua vez, cortou programas de financiamento paralelos por causa do aumento do desmatamento e das queimadas no Brasil. Os valores retidos somavam 35 milhões de euros (cerca de 227 milhões de reais).
Após o anúncio dos alemães, Bolsonaro tratou o congelamento dos repasses com desprezo. "Ela [Alemanha] não vai mais comprar a Amazônia, vai deixar de comprar a prestações a Amazônia. Pode fazer bom uso dessa grana. O Brasil não precisa disso", disse o presidente no domingo.
Diante da resposta de Bolsonaro, a ministra alemã do Meio Ambiente da Alemanha, Svenja Schulze, reagiu: "Isso mostra que estamos fazendo exatamente a coisa certa." Logo depois, o presidente brasileiro voltou a atacar os alemães: "Eu queria até mandar recado para a senhora querida [chanceler federal] Angela Merkel. Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, tá ok? Lá tá precisando muito mais do que aqui."
O mesmo tipo de recado foi endereçado aos noruegueses, maiores doadores do fundo. "A Noruega não é aquela que mata baleia lá em cima, no Polo Norte, não? Que explora petróleo também lá? Não tem nada a oferecer para nós. Pega a grana e ajuda a Angela Merkel a reflorestar a Alemanha", disse Bolsonaro.
No segundo semestre de 2019, o ministro Salles viajou a Berlim para tratar de um eventual descongelamento dos recursos. Ele foi recebido com protestos de ambientalistas e teve encontros discretos com membros do governo alemão. Ao final, ele deixou a capital alemã sem obter concessões do governo Merkel.
Logo depois da visita, um porta-voz do Ministério do Meio Ambiente da Alemanha disse que a pasta não pretendia rever sua posição em relação à suspensão da verba até que houvesse "uma impressão bem fundamentada de que o dinheiro será bem investido". Nada foi liberado até hoje.
Imagem deteriorada
Outros episódios também ajudaram a deteriorar a imagem do governo brasileiro na Europa, como as ofensiva contra o Inpe e o desmonte de mecanismos de fiscalização, que precederam a retenção de valores de doadores.
Ao longo de 2020, o governo brasileiro tentou fazer alguns gestos midiáticos para melhorar sua imagem e vender a ideia de que estava comprometido com o combate ao desmatamento e queimadas. Em novembro, o vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho Nacional da Amazônia, comandou uma viagem a três cidades da região amazônica com embaixadores de diversos países.
No entanto, o embaixador da Alemanha, Heiko Thoms, afirmou à DW Brasil que a viagemnão mudou a percepção do governo alemão sobre as ações de Bolsonaro e que não há previsão para a retomada das transferências ao Fundo Amazônia.
jps/lf (ots)