7 mil crianças e adolescentes assassinados por ano no Brasil
22 de outubro de 2021Em suas próprias casas ou nas ruas, quase 7 mil crianças e adolescentes morreram no Brasil por ano de forma intencional e violenta, entre 2016 e 2020, e cerca de 45 mil são vítimas de violência sexual anualmente – na faixa etária de 0 a 19 anos. A cada dois dias, mais de uma criança de até 9 anos é morta no país.
Das 34.918 mortes violentas intencionais (MVI) de crianças e adolescentes nos últimos cinco anos, 31.992 eram adolescentes entre 15 a 19 anos; 1.784 vítimas tinham entre 10 e 14 anos; e 1.070 dos casos eram crianças entre 0 a 9 anos. Já os dados gerais de violência sexual – especificamente sobre estupro de vulneráveis – apontam para 179.277 casos no período de 2017 a 2020.
Os dados confirmam que a violência contra crianças entre 0 e 9 anos é um crime que essencialmente ocorre dentro de casa, com autores conhecidos, em geral parentes ou pessoas que têm relações de amizade com a família. Na medida em que aumenta a faixa etária, no caso dos adolescentes, eles são vítimas basicamente da violência urbana, sendo que os meninos negros são os alvos principais.
Os números constam de uma detalhada base de dados, a primeira do Brasil, organizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) a partir da compilação exaustiva de informações de ao menos 18 unidades da federação, reunindo informações sobre a morte violenta intencional de crianças e adolescentes por perfis etários, numa perspectiva histórica, e revelando a realidade brasileira dos últimos cinco anos.
Para organizar essa série histórica, os pesquisadores fizeram uma análise inédita dos boletins de ocorrência das 27 unidades da federação, com inúmeros dados sem nenhuma uniformidade e padronização no país e muitas vezes imprecisos. As informações foram obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), que obriga o poder público a dar respostas transparentes sobre dados públicos.
Chocantes e alarmantes, as estatísticas reveladas no "Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil" são importante fonte de pesquisa para gestores públicos, permitindo revisão e formulação de políticas públicas que possam reverter essa curva nefasta de crimes contra crianças e adolescentes no país, esperam os pesquisadores.
Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenadora editorial do estudo divulgado nesta sexta-feira (22/10), Sofia Reinach afirmou, em entrevista exclusiva à DW Brasil, que dois aspectos chamam a atenção no estudo: "O primeiro deles é morrerem mais de 200 crianças por ano no Brasil. Mais de uma criança a cada dois dias, de 0 a 9 anos, morre violentamente. É um dado chocante. Perto do número de adolescentes que morrem, pode parecer um número pequeno, mas considerando que são crianças até 9 anos é um dado que nos impressionou muito."
O outro dado inquietante, diz a pesquisadora, é que, a despeito de a violência sexual vitimar majoritariamente meninas, com casos concentrados na faixa etária de 10 a 14 anos, há um número bastante significativo de estupros de crianças de 0 a 9 anos. "É um crime contra a infância", sentencia Reinach.
É necessário analisar os dados deste panorama de maneira compartimentalizada, pontua a pesquisadora, olhando com atenção para cada faixa etária e para os diferentes tipos de crimes. É alarmante, por exemplo, que as mortes de crianças de 0 a 4 anos tenham aumentado 27% entre 2016 a 2020, diz ela.
"Existem dois fenômenos quando a gente fala de crianças e adolescentes no Brasil. De 0 a 9 anos é a violência doméstica que mais vitimiza as crianças. De 10 a 14 começa uma transição, que se consolida entre 15 a 19 anos, para a violência urbana ser o que mais os vitimiza", explica.
A pesquisadora enfatiza que "é preciso tratar esses fenômenos separadamente". "Se quase 32 mil mortes de adolescentes [entre 15 e 19 anos] em cinco anos é um número absurdo, e isso precisa ser analisado com a seriedade devida, também é um absurdo falarmos de mortes de crianças de 0 a 9 anos em circunstâncias domésticas, dentro de suas próprias casas", observa Reinach.
A dificuldade em lidar com registros criminais
O estudo analisa os seguintes tipos de mortes violentas intencionais: homicídio doloso; feminicídio; latrocínio; lesão corporal seguida de morte; e mortes decorrentes de intervenção policial. Os dados de violência sexual compilados referem-se a estupros e estupros de vulneráveis contra crianças e adolescentes.
No escopo de crimes sexuais, os dados de 2016 sobre esses delitos, segundo os pesquisadores, não eram confiáveis e claros para serem compilados numa série histórica inédita e, por isso, foi feita a opção de organizar as informações a partir de 2017. "Um dos grandes desafios no Brasil é lidar com dados mais antigos. Os dados de 2020 já são mais completos e de melhor qualidade", observa Reinach.
De acordo com Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, "35 mil mortes de crianças e adolescentes é o que a gente consegue medir, mas sabemos que esse número é superior, por conta de falhas de preenchimento de boletins de ocorrência". Bueno ressalta que o panorama "é uma estimativa conservadora quando olhamos para esse cenário".
A pesquisadora Sofia Reinach pontua as "dificuldades em lidar com registros criminais no Brasil". "Não podemos nos conformar com um país que não consegue compilar de forma sistemática todos os seus dados criminais", acrescenta.
A barbárie do estupro de bebês e crianças
Nos casos de violência sexual, os crimes são permeados por extensa subnotificação, explicou Samira Bueno, durante conferência virtual para exposição dos dados do panorama.
A idade mais frequente desses crimes ocorre entre 10 e 14 anos, mas a diretora do Fórum faz um alerta: "Para além do horror e da barbárie de termos 45 mil estupros por ano de crianças e adolescentes, um terço das vítimas tem entre 0 a 9 anos. Ou seja, estamos falando de bebês e crianças que sofrem violência sexual, e o agressor é alguém conhecido".
Bueno pontuou, ainda, que "na maior parte dos casos, em mais de 50% deles, [o estupro] ocorre dentro de casa; e em mais de 80% dos casos são cometidos por autores conhecidos".
Do total de 179.277 casos de estupros de 2017 a 2020, em quase 35% dos casos (62.254 deles), as vítimas tinham de 0 a 9 anos. A maior parte dos estupros ocorre na faixa etária de 10 a 14 anos, tendo sido registrados 74.414 casos. Já entre adolescentes (15 a 19 anos), foram 29.210 casos no período.
"Quando falamos de criança e adolescente é ainda mais grave porque eles não sabem identificar que aquilo é uma violência sexual", observa a diretora do Fórum. Mais de 90% das vítimas entre 10 e 19 anos são do sexo feminino.
Samira Bueno é enfática sobre a revelação dos dados: "O mais frequente é que a violência sexual ocorra dentro de casa e parta de alguém conhecido." Quando se analisa os dados de estupro de vulneráveis, em todas as faixas etárias – 0 a 9 anos, 10 a 14 anos e 15 a 19 anos – mais de 50% dos casos ocorrem nas residências das vítimas.
Transição da violência doméstica para a violência urbana
Em 2020, 15% de todas as mortes violentas de crianças de 10 a 19 anos foram decorrentes de intervenção policial. No caso de adolescentes de 15 a 19 anos, 85% das mortes ao longo dos últimos cinco anos foram provocadas por armas de fogo, percentual que cai para 75% nas idades de 10 a 14 anos, e para 46% quando as vítimas tinham entre 0 a 9 anos.
Quase 90% dos casos de mortes violentas de adolescentes de 15 a 19 anos ocorreram, de 2016 a 2020, em vias públicas ou outros locais, ou seja, deixa de ser um fenômeno doméstico e passa a ser um aspecto de violência urbana: prevalecem as mortes fora de casa, de meninos negros, por arma de fogo e com autor desconhecido.
O panorama feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Unicef comprova que, na medida em que aumenta a idade das crianças, fica mais perceptível a violência urbana e a desigualdade racial e de gênero. Quando analisados todos os casos de mortes violentas da série histórica, 80% das vítimas entre 10 e 19 anos de idade eram negras.
Segundo Sofia Reinach, os dados comprovam que "arma de fogo, sim, pode ser um agravante de violência doméstica". "A gente tende a achar que na primeira infância as mortes não envolvem armas de fogo, mas estamos dizendo que quase a metade tem, sim, relação", acrescenta Samira Bueno.
Respostas imediatas e políticas públicas
As duas formas de violência extrema – mortes violentas intencionais e violência sexual com estupro – mostram que elas "atingem todas as faixas etárias, ainda que de maneiras diferentes", afirma Florence Bauer, representante do Unicef no Brasil. O primeiro passo para atuar nesta triste realidade "é desnaturalizar essa violência". "Nenhuma dessas mortes é aceitável", sentencia.
Bauer afirma que o Unicef tem trabalhado com diferentes atores para tentar fortalecer políticas públicas que possam reduzir esses crimes. Ela salientou a importância de fortalecer canais de denúncia – "a denúncia desses casos é fundamental" – e "cada vez mais investir na capacitação de profissionais" das redes de assistência social e saúde do país. "Casos de violência podem ser prevenidos se forem identificados no início", defende a representante do órgão da ONU.
Outros dois fatores que podem reduzir a incidência de crimes violentos contra crianças são a implementação de projetos sociais nas comunidades em que vivem e a busca ativa para que essas crianças e adolescentes permaneçam ou voltem para as escolas, o que foi um problema marcante na pandemia. Bauer cita ainda como avanços a criação de comitês pela prevenção de homicídios na adolescência na Bahia, no Ceará, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
"Esses comitês juntam ao redor da mesma mesa atores do poder público de governos estaduais e municipais, da polícia, assembleias legislativas, Justiça, sociedade civil e os próprios adolescentes. Esses âmbitos de discussão têm sido extremamente importantes porque primeiro colocam um rosto humano nas vítimas", afirma Bauer.
Legislações que priorizam a investigação de casos de homicídio de crianças e adolescentes, exemplos ocorridos no Rio e São Paulo, também são avanços, diz. "Esse trabalho é acertado, senão ficamos reféns de só conversar com o Executivo, e muitas vezes a gente não consegue conectar esses esforços."
Para Samira Bueno, diretora do Fórum, não há outro caminho para enfrentar o problema que não seja envolver diferentes atores, como sociedade civil organizada, Poder Legislativo, Ministério Público, organismos internacionais, entre outros. "Pensar que seremos capazes de punir os autores desses crimes é um primeiro passo para reverter esse quadro", conclui.