"Brasil tem pior sistema de tributação de consumo do mundo"
24 de novembro de 2023Depois de décadas de tentativas, a expectativa é que reforma tributária seja finalmente concluída e promulgada até o final deste ano, segundo o secretário extraordinário da reforma tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy. Aprovado pelo Senado, o texto foi enviado à Câmara dos Deputados, onde deve começar a tramitar nos próximos dias.
"Esse governo de fato está alocando capital político para viabilizar a aprovação da reforma tributária, ao contrário do passado", afirma Appy, que acompanhou ou participou de reformas em governos anteriores.
Aprovada, estima o economista, a reforma, que terá efeito nulo atual na carga tributária atual, deve aumentar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em até 1 ponto porcentual ao ano e o poder de consumo da população em 10%. "O principal efeito da reforma tributária, do ponto de vista social, é exatamente o efeito que ela tem sobre o crescimento da economia", destaca Appy, em entrevista à DW.
A reforma unifica a legislação tributária. Transforma cinco tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins) em três. Os novos IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e Imposto Seletivo. O modelo é do IVA (Imposto sobre Valor Agregado). "Teremos um sistema que vai estar na média dos países da OCDE. Perto do que nós temos hoje no Brasil é um avanço enorme", projeta Appy.
Leia os principais trechos da entrevista abaixo:
DW: Quais as chances de a reforma tributária sair ainda este ano?
Bernard Appy: Há uma perspectiva muito boa de ter a emenda constitucional da reforma tributária promulgada até o final desse ano. Obviamente, o Congresso tem o seu ritmo, a gente tem que respeitar. Eu diria que a possibilidade é grande. É uma reforma que a gente vem discutindo no Brasil há muito tempo e criou-se o ambiente possível, positivo para poder aprová-la agora.
Quantas reformas tributárias já foram tentadas no país nas últimas décadas?
Primeiro, perdeu-se uma chance enorme de avançar com uma reforma na linha de ter um IVA de base ampla, cobrado no destino, na Constituinte de 1988. Teve a proposta do Fernando Henrique (1995), a de 2003 (Governo Lula 1) e a de 2008 (Governo Lula 2). E as mais restritas ao ICMS, duas na época da presidente Dilma Rousseff, além de outra no governo Michel Temer.
A aprovação de uma reforma desse porte exige capital político e apoio do Executivo. Isso está acontecendo?
Está alocando capital político claramente. Primeiro, o Executivo concordou em alocar um volume de recursos muito elevado no Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional para poder viabilizar a reforma. Um valor que é crescente ao longo do tempo, mas que chega a R$ 60 bilhões em 2043. E envolve, obviamente, capital político no seu relacionamento com o Congresso. Esse governo de fato está alocando capital político para viabilizar a aprovação da reforma tributária, ao contrário do passado.
Na prática, a carga tributária com a reforma vai aumentar ou não?
Não. A reforma é construída estruturalmente para manter a carga tributária como proporção do PIB. Dentro da reforma, você, ao longo da transição, à medida que você vai substituir os tributos atuais por novos tributos, você vai calibrando as alíquotas dos novos tributos para manter a arrecadação com proporção do PIB dos tributos atuais. Então ela é neutra.
Os estudos da secretaria apontam, hoje, para que alíquota padrão?
Com as mudanças colocadas pelo Senado, em bases realistas, mas que vão depender da regulamentação, estamos estimando entre 25,9% e 27,5% de alíquota padrão.
Houve um excesso de exceções, ou seja, reduções da alíquota padrão?
De fato, a gente gostaria que tivesse menos exceções. Elas drenam, sim, uma parte do efeito positivo da reforma. Mas só uma parte. O grosso dos efeitos positivos permanece. Os efeitos positivos da reforma tributária vêm de três fatores: a simplificação, a eliminação de distorções que levam à tributação de investimentos e tiram competitividade da produção nacional, e a correção de distorções na forma de organização da produção. O efeito sobre o crescimento econômico depende desses três fatores.
Alguns dizem que a reforma tributária não impacta o problema da desigualdade. Com vê isso?
Para tratar da questão de desigualdade é preciso olhar para a política pública como um todo. Se você pensar em um país que não tem IVA, implanta o IVA, que é regressivo e usa 100% da receita para financiar a educação pública, a saúde pública e programas de transferência de renda para as famílias mais pobres, o efeito distributivo da política pública vai ter sido positivo.
Hoje no Brasil o consumo do pobre é mais tributado que o consumo do rico. Na verdade, você reduz um pouco a tributação dos 80%, 90% mais pobres e sobe um pouco a tributação dos 10% mais ricos do país. A reforma também reduz muito distorções na distribuição da receita entre os entes federativos. Mas o principal efeito da reforma tributária, do ponto de vista social, é exatamente o efeito que ela tem sobre o crescimento da economia.
Qual o impacto no crescimento da economia com a reforma tributária?
Poderia dizer com muita segurança que deve dar um aumento superior a 10 pontos percentuais no PIB potencial do Brasil, no horizonte de 15 anos. E um crescimento adicional de, na média, 0,7 a 1 ponto percentual do PIB por ano. Vamos pegar o PIB do Brasil. Vamos pegar o PIB no ano passado, que foi de R$ 10 trilhões: 10% disso é 1 trilhão de reais. A tributação no Brasil, a arrecadação é de mais ou menos 1/3 do PIB. Nós estamos falando aí R$ 300 bilhões a R$ 350 bilhões de reais a mais de receita pública, mantendo a carga tributária como proporção do PIB. São recursos disponíveis para fazer política pública.
Como a reforma da renda afetará a sociedade?
O objetivo da reforma da renda é corrigir distorções que permitem que uma parcela relevante das pessoas de alta renda do país seja menos tributada do que pessoas de menor renda. Só para dar um exemplo: tributação de fundos fechados de offshore. Hoje, pessoas de alta renda, seja no Brasil, no fundo fechado, seja no exterior, no offshore usado para fazer aplicações financeiras, tinha o benefício de um diferimento. Ou seja, só pagava imposto no fundo fechado quando tirasse o dinheiro do fundo. Pode demorar décadas para fazer isso. E no exterior, quando retornasse o dinheiro para o Brasil. Enquanto a pessoa de classe média que tem dinheiro aplicado no fundo de investimento paga imposto duas vezes por ano. Agora, os fundos fechados no Brasil vão passar a pagar o mesmo imposto que paga o fundo aberto da classe média.
Diz-se que o país tem o pior sistema tributário do mundo ...
Hoje, o Brasil tem, com certeza, o pior dentro do sistema de tributação de consumo do mundo. Nós vamos nos aproximar da média mundial. Não vamos ter o melhor sistema de tributação de consumo. A gente teria, se tivesse feito um sistema sem nenhuma exceção. Talvez conseguisse ter um dos melhores do mundo. Mas a gente vai ter um sistema que vai estar na média dos países da OCDE. Perto do que nós temos hoje no Brasil é um avanço enorme.
Alguns setores demonstraram receio sobre o período de transição entre o sistema atual e o novo. O que é que foi feito para mitigar a transição?
A ideia é que a transição seja a menos traumática possível para todas as empresas. O novo sistema é todo baseado na emissão de documento fiscal eletrônico. E o Brasil já está muito avançado no uso destes documentos. Para as empresas que já utilizam, basicamente, a exigência vai ser incorporar alguns campos a mais na nota fiscal eletrônica.
Como será o timing da transição dos sistemas?
Durante algum tempo vai haver convivência entre os tributos, mas em 2027 já não haverá PIS, COFINS e IPI, o que já é uma baita simplificação. Em 2033, se extinguem todos os tributos atuais. A reforma entra plenamente em vigor neste ano.