Bélgica lembra 100 anos de batalha decisiva para Primeira Guerra
28 de outubro de 2014Cem anos atrás, os poderosos invasores alemães atacaram a cidadezinha belga de Nieuwpoort, no litoral do Mar do Norte. Lá, desembocavam cinco rios e canais das planícies pantanosas de Flandres.
Os campos que se encontravam abaixo do nível do mar haviam sido drenados com um complexo sistema de canais artificiais e comportas. Movido pelo desespero, um oficial belga apresentou a ideia de transformar o lado alemão do front num gigantesco lago, para conter o rápido avanço do Exército inimigo.
O rei Alberto 1º, que comandava as tropas belgas naquela última ponta restante de Flandres Ocidental, concordou. Ao longo de quatro noites, as barragens e comportas foram abertas por dois civis, sob o fogo dos atiradores inimigos. As águas do Mar do Norte inundaram a região e, de fato, o Exército da Alemanha ficou atolado.
Para o historiador belga Patrick Vanleene, a inundação de Flandres foi uma virada importante na Primeira Guerra Mundial.
"Pela primeira vez, a invasão alemã na Bélgica foi detida. Isso transformou a guerra de movimento numa guerra de trincheira durante quatro anos. Assim conhecemos o grande conflito: uma guerra de posição travada nas trincheiras, de ambos os lados", conta.
Presença viva de Alberto 1º
No local onde se encontravam as antigas barragens realiza-se a cerimônia internacional pelo início da Primeira Batalha de Flandres. Ali os belgas erigiram para Alberto 1º um monumento circular, de tijolos amarelos. Em seu centro está a estátua equestre do monarca; atrás dela, o Rio Yser, que corre ao longo do antigo front.
Alberto foi o único soberano que participou pessoalmente dos combates na Primeira Guerra, recusando-se a abandonar seu país e seu Exército – embora os aliados franceses tivessem preferido ver o rei dos belgas na segurança do exílio.
"O rei rejeitou isso conscientemente", conta o historiador Herbert Ruland, da Escola Superior da Comunidade Germanófona de Eupen, na província de Liège. Alberto sabia que, se deixasse seu país, provavelmente nunca mais retornaria. "Para a Bélgica, esse combate à margem do Yser provavelmente significou sua sobrevivência como nação."
Passados cem anos, Alberto 1º segue popular entre os belgas. Um longo ônibus articulado da companhia de transportes urbanos flandrina leva aos povoados das vizinhanças uma espécie de mostra móvel dedicada a ele. O "Albert bus" é muito bem frequentado, comenta seu motorista na parada em Nieuwpoort.
Na pacata cidadezinha, que vive da pesca e do turismo, naturalmente se come o arenque curado em vinagre matjes na Peixaria Albert. Para a cerveja, os flamengos procuram a taverna Albertbrug (Ponte Alberto). Sua fachada branca está um pouco descascada, mas, nos últimos dias, foi decorada com bandeiras britânicas – as tropas do Reino Unido lutaram na frente de batalha do Yser.
Horror nas trincheiras
Em 29 de outubro de 1914 iniciou-se em Nieuwpoort uma chacina que só acabaria quatro anos mais tarde. O front corria ao longo dos rios Yser e Yperlee até a cidade de Ypres, onde, em 1915, os militares alemães empregaram pela primeira vez gás tóxico em combate. Ao longo dessa linha escavaram-se centenas de quilômetros de trincheiras – com os alemães na margem leste, e as tropas aliadas, na margem oeste.
Em Diksmuide, a meio caminho entre Nieuwpoort e Ypres, foi reconstituída uma parte do "Corredor da Morte", as trincheiras que tantas vezes se transformaram em armadilhas mortais.
Hoje, passeando pelos fossos sobre o chão firme, de madeira ou cascalho, é quase impossível para os turistas avaliar quão insuportável era a vida dos soldados. Lama, excrementos, crateras de bombas, cadáveres, gritos, chuva, neve e o permanente pavor de morte eram seus companheiros de trincheira, conta Patrick van Wanzele, que pesquisou os abrigos no solo.
Última geração traumatizada
Para a população de Flandres Ocidental, a guerra foi inicialmente uma grande surpresa. Camponeses e pescadores não contavam que os alemães fossem tentar justamente por ali a passagem para a França. Em outubro de 1914, milhares de refugiados do leste pensavam ter encontrado segurança em Nieuwpoort.
Mas aí vieram os soldados, conta Patrick Vanleene, organizador de uma exposição histórica sobre a Batalha de Flandres.
"Irrompeu o pânico total, pois os habitantes da cidade não estavam preparados. Não para receber todo o Exército que chegara à cidade e procurava proteção nas igrejas e escolas", relata.
Por causa da anunciada inundação do oeste de Flandres e dos constantes combates, milhares tiveram que deixar suas propriedades. Também os avós de Vanleene foram atingidos.
"Talvez seja da última geração que ainda consegue sentir esse trauma da Primeira Guerra Mundial, pois eu ainda tinha avós que falavam a respeito. Eles viveram dos dois lados da linha do front, e tiveram que fugir, todos, para a França. Alguns dos irmãos se tornaram soldados e dois deles morreram na guerra", afirma.
"Guerra não é só algo que se vê na TV"
O ano de jubileu 2014 atrai muitos visitantes a Flandres Ocidental. Espalhados pelos antigos campos de batalha, ainda há vestígios dos postos e cemitérios militares de todas as nações envolvidas no grande conflito. Trilhas sinalizadas convidam a passeios históricos de carro ou de bicicleta ao longo das pitorescas valetas à beira das quais se travaram os combates.
No momento, transcorrem na Bélgica as férias de outono: muitos pais passeiam por Flandres com os filhos. É preciso sempre explicar por que ali há tantas sepulturas, em parte ornamentadas com papoulas de papel ou plástico. Mas vale a pena o esforço, assegura Patrick Vanleene, diante do monumento a Alberto 1º em Nieuwpoort.
"Eu acredito no poder da educação. Pode-se mostrar de forma interessante aos jovens, numa exposição, quanto cuidado eles precisam ter. Meninos e meninas precisam reconhecer que guerra não é apenas algo que se vê na televisão", enfatiza o historiador.