Caos no Iêmen afeta segurança na região e também na Europa
21 de janeiro de 2015O triunfo da milícia xiita-zaidita Houthi em Sanaa era previsível. Há meses ela controlava grande parte da capital do Iêmen. Após o constante avanço sobre o distrito governamental e violentos confrontos com forças governamentais nesta terça-feira (20/01), os rebeldes invadiram o palácio presidencial.
Também foram relatados ataques à residência do presidente Abd Rabbuh Mansur al-Hadi em Sanaa. Segundo a agência de notícias AP, ele estaria "cativo" dos houthis, não podendo deixar sua residência. Pouco antes da tomada da sede do governo, ele vinha advertindo sobre o perigo de um colapso do Estado iemenita.
Sua previsão parece prestes a se concretizar. A ofensiva zaidita não permanecerá sem resposta e, se as tropas governamentais não conseguirem retomar o palácio presidencial, o país estará diante de um período de graves tumultos.
Questão religiosa é secundária
Apenas poucos meses atrás, a situação era completamente diferente no país árabe. O governo central, de predominância sunita, e a milícia xiita Houthi pareciam ter chegado a um acordo. Em setembro de 2014, os dois lados assinaram um pacto, que estabelecia as bases de um "governo de unidade nacional".
Ambos igualmente concordaram quanto ao novo primeiro-ministro, o diplomata Khaled Bahah. Além disso, o presidente Hadi nomearia dois conselheiros: um do norte do Iêmen, dominado pelos xiitas, e um do sul, basicamente sunita. O novo governo teria tantos ministros de origem houthi quanto de seu principal adversário, o partido sunita Al-Islah, que dá o tom em Sanaa.
Contudo, mal o pacto estava firmado e as velhas diferenças voltaram à tona. Ambos os signatários se sentiram prejudicados no acordo, e cada vez menos vinculados a ele. Por fim, reiniciaram-se os combates armados, que já pareciam encerrados.
As lutas se originam de antigos conflitos de poder e participação política. Muitas famílias xiitas do norte vivem nas mesmas condições de pobreza que suas compatriotas sunitas do sul. Ambas sofrem por a maior parte da receita nacional ir para a capital Sanaa, restando relativamente pouco para as províncias mais afastadas.
Nesse sentido, o porta-voz dos houthis, Mohammed al-Bukhaiti, já explicara há algum tempo, em entrevista à emissora Al Jazeera, não se tratar de um conflito religioso. "Nunca decidimos com quem compactuar baseados em critérios confessionais", afirmara. "Decerto estamos conscientes de quem somos. Mas a fé representa um papel, na melhor das hipóteses, secundário."
Sauditas ameaçados no norte e no sul
O caos iemenita também põe em risco a estabilidade na Arábia Saudita. Meses atrás, o reino reforçou a segurança nas fronteiras com o Iêmen, onde se vê ameaçado por dois grupos. De um lado estão os houthis, que têm relações familiares com os xiitas sauditas. Do outro, as milícias da organização terrorista Al Qaeda na Península Árabe (AQPA), uma das formações mais fortes e modernas da rede jihadista.
Se o Houthi mantiver a vantagem em Sanaa, essa poderá ser mais uma razão para a Arábia Saudita melhorar as relações com seu principal concorrente regional, o Irã. Nos últimos meses, Teerã tem se afirmado como uma das forças mais atuantes no combate à organização terrorista sunita "Estado Islâmico" (EI).
Da mesma forma, os Estados Unidos se mostram interessados em melhorar suas relações com os iranianos, para desagrado do governo em Riad, já que há décadas os sauditas contam entre os principais parceiros de Washington na região.
Agora, a Arábia Saudita precisa proteger suas fronteiras tanto ao sul quanto ao norte. Aí ela está sob ameaça direta do EI, cujos milicianos mataram dois guardas de fronteira sauditas há poucos dias. A pressão crescente poderá forçar Riad a repensar suas relações exteriores, assim como seu posicionamento ambivalente a respeito do fundamentalismo religioso.
Perigo também para a Europa
No próprio Iêmen, sobretudo a AQPA tem a lucrar com o avanço da milícia xiita-zaidita Houthi. O governo fraqueja e, com ele, o Estado: isso favorece a organização terrorista na ampliação de seu campo de influência e no recrutamento de pessoal – representando um perigo não só para o Oriente Médio, mas também para a Europa.
A AQPA é uma notória base de recrutamento de jihadistas europeus, que são treinados no Iêmen antes de serem enviados de volta a seus países, com a missão de executar atentados terroristas.
O cartunista Stéphane Charbonnier, morto no ataque ao tabloide humorístico Charlie Hebdo em 7 de janeiro de 2015, era um dos nomes na lista de morte da AQPA. Uma confirmação de que, caso não se consiga pacificar a situação no Iêmen, os efeitos também se farão sentir no continente europeu.