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Caso Feliciano expõe consolidação do poder da religião na política nacional

Fernando Caulyt26 de março de 2013

Bancada religiosa representa um quinto do Congresso e se une para conter o avanço de pautas como aborto, drogas, direitos das mulheres e de homossexuais. Postura leva a questionamentos sobre real laicidade do Estado.

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Foto: José Cruz/ABr

A controversa escolha do deputado federal Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara não é um fato isolado. Ela expõe, segundo especialistas, a consolidação do poder político das religiões no Brasil, sobretudo da evangélica, que cada vez mais direciona forças para impor sua agenda.

Os parlamentares ligados a instituições religiosas já representam um quinto do Congresso. Em 20 anos, o número de deputados federais e senadores evangélicos mais que triplicou – saltou de 23 em 1990 para 73 em 2010, perdendo hoje só para a bancada ruralista. E, com isso, os embates com grupos de direitos civis, pró-liberalização do aborto e das drogas, de direitos humanos e de defesa da laicização do Estado se intensificaram.

"Os católicos sempre foram hegemônicos no Brasil, você não precisava nem dizer que pertencia a essa religião. Mas, com o crescimento dos evangélicos, há um desequilíbrio nessa equação. A disputa foi para além dos limites do campo religioso, porque estar na política é garantir espaços privilegiados", destaca Christina Vital, professora de ciências sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Sob o pretexto de "proteger a família e a vida", os parlamentares das bancadas católica (22 congressistas) e evangélica deixam as diferenças de lado e chegam a trabalhar juntos para tentar conter o avanço de pautas como aborto, casamento homossexual e liberalização das drogas.

Mas os atuais esforços de hoje diferem da atuação após a redemocratização, quando parte do segmento católico e evangélico foi importante para o avanço dos direitos humanos e pautas da minoria, como temas ligados à terra, melhoria das condições de trabalho e dos direitos cidadãos. Os assuntos, no entanto, não afetavam a reprodução e a sexualidade.

E as alianças formadas pelas bancadas religiosas têm grande poder de ramificação. Como exemplo, a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Preservação da Família, que une católicos, evangélicos e outros políticos de alguma forma ligados a esses preceitos, conta com 192 parlamentares (40% do Congresso).

Demonstration in Berlin gegen Marco Feliciano Ageordneter Brasilien
Diversos protestos no Brasil e no exterior, como em Berlim (foto) pedem a renúncia do deputado Marco FelicianoFoto: Clarisse Canela

"Não são somente eles que são conservadores. Eles vocalizam boa parte do que a população brasileira pensa sobre aborto, direitos das mulheres e de homossexuais", diz Vital.

Frank Usarski, professor de ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), diz que, em comparação com a Alemanha, por exemplo, o pluralismo das forças religiosas é menor no Brasil, porém a influência da religião é maior. "O enraizamento das igrejas na consciência e na realidade social dos brasileiros é maior", afirma o especialista alemão.

Estado laico

E, dessa forma, as religiões ameaçam o Estado laico brasileiro, como alerta o livro Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. O estudo, de autoria dos pesquisadores Christina Vital e Paulo Victor Leite Lopes, é fruto da parceria entre a Fundação Heinrich Böll no Brasil e o Instituto de Estudos da Religião (Iser).

Nele, os autores descrevem o avanço dos evangélicos na política na década de 1980 e dizem que essa movimentação no campo político-religioso pelos evangélicos "introduziu um empowerment de diferentes tradições religiosas". Dessa forma, diz o texto, as igrejas passaram a reivindicar um lugar para si a fim de ampliarem a influência de suas denominações, tradições e valores.

Cerca de metade dos deputados pentecostais é composta por pastores, cantores gospel e parentes de líderes de igrejas, tele-evangelistas e donos de emissoras de rádio e TV. E, para serem eleitos, eles dependem do apoio eleitoral de pastores e líderes das igrejas.

"Essa dependência reforça o caráter corporativista e moralista de seus mandatos e seu compromisso de atuarem como despachantes de igreja", opina Ricardo Mariano, professor de sociologia da PUC do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em artigo recentemente publicado pela Revista de História.

Mas um equilibro das forças, mesmo que religiosas, é bem visto no palco político nacional. "É bom que diminua o poder dos católicos, mas que não se substitua um equívoco por outro – que seria a luta de algumas religiões evangélicas contra a predominância católica", destaca Ubirajara Calmon, professor aposentado de ética e teologia da Universidade de Brasília (UnB).

Luta pelo poder

Mas os evangélicos não são os primeiros a inaugurar a relação entre Estado e religião. O Brasil se tornou formalmente laico a partir da primeira Constituição Republicana, em 1891, "mas a igreja Católica sempre fez esforço ao longo desse período para garantir presença no Estado público", destaca Vital.

The Universal Church of the Kingdom of God Brasilien
Templo da Igreja Universal do Reino de Deus, a mais conhecida das pentecostais brasileirasFoto: picture-alliance/Godong

Como exemplo, está a introdução na Constituição de 1934 da obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras e o acordo Brasil-Santa Sé aprovado em 2009 – que dá mais direitos à Igreja Católica em território nacional e recebeu na época críticas de organizações não governamentais e até mesmo do Ministério da Educação.

Para Vital, a questão da laicidade do Brasil é embaralhada, até mesmo pela abrangência do termo. Ela cita, por exemplo, o fato de não existir contribuição direta do imposto de renda para instituições religiosas, como acontece em alguns países da Europa.

"Por esse lado, o Estado é laico. Mas, por outro, se laicidade não é a presença da religião ou não ter a interlocução da religião com o segmento político, aí o Brasil não é laico. No Brasil, há uma enorme presença do elemento religioso no espaço público", concluiu.