Caso Queiroz mantém sombra da corrupção sobre clã Bolsonaro
15 de maio de 2019No fim da semana passada, o presidente Jair Bolsonaro mostrou preocupação com a possibilidade de um "tsunami" afetar seu governo. A frase enigmática não foi explicada pelo Planalto, mas em Brasília há a percepção de que o presidente se referia à quebra de sigilo fiscal e bancário de um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), tornada pública nesta semana pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). O avanço do processo representa riscos ao governo.
A decisão do juiz Flávio Nicolau, do TJ-RJ, chamou atenção por conta de sua abrangência. Trata-se de uma devassa no passado político e financeiro do filho do presidente. Os alvos principais são Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor Fabrício Queiroz, pivô do escândalo. Além da dupla, outras 84 pessoas e 9 empresas tiveram seus sigilos quebrados a partir de janeiro de 2007. São 11 anos de material para investigação.
A maior parte dos alvos são funcionários e ex-funcionários da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), inclusive do gabinete de Flávio Bolsonaro, que até o ano passado era deputado estadual. Uma das suspeitas é que Queiroz liderava em seu gabinete um esquema de "rachadinha". Neste sistema, conhecido na política nacional, os funcionários ganham cargos no gabinete, mas repassam parte do salário ao parlamentar.
A quebra de sigilo mostra, no entanto, que a investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro vai além da eventual "rachadinha" e apura também a lisura de diversas transações imobiliárias feitas por Flávio Bolsonaro nos últimos anos. Entre os alvos da quebra de sigilo estão os sócios das empresas MCA Exportação e Participações e Linear Enterprises Consultoria, com as quais Flávio Bolsonaro negociou diversos imóveis entre 2010 e 2014. Reportagens nos últimos meses revelaram que Flávio teve lucro de centenas de milhares de reais nas negociações.
Mais sensível ainda é a possibilidade de integrantes do gabinete de Flávio terem ligações com as milícias que atuam no Rio de Janeiro. São alvos da quebra de sigilo Danielle Nóbrega e Raimunda Magalhães, respectivamente mulher e mãe de Adriano Magalhães da Nóbrega, apontado pelo MP do Rio de Janeiro como um dos líderes do "Escritório do Crime". O grupo é acusado pela morte da ex-vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, em março de 2018.
Raimunda Magalhães fez ao menos um repasse a Queiroz, de R$ 4,6 mil. Seu filho está foragido. O parceiro na condução da milícia, Ronnie Lessa, apontado como responsável pelos tiros contra Marielle e Anderson, foi preso. Ele morava no mesmo condomínio do presidente Jair Bolsonaro no Rio, uma coincidência segundo os promotores.
Flávio Bolsonaro se defende das acusações. Diz que os lucros imobiliários são compatíveis com o boom vivido pelo Rio de Janeiro antes dos Jogos Olímpicos de 2016 e que errou ao "confiar demais" em Queiroz. O senador acusa, ainda, o Ministério Público de realizar uma investigação ilegal e quebrar seu sigilo sem autorização da Justiça. Na realidade, o que chegou aos jornais foi um relatório enviado ao MP pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão que monitora transações atípicas. Tal alerta foi enviado em 3 de janeiro de 2018, data que completa 500 dias nesta semana.
Governo fragilizado
A exploração política da investigação pode afetar o Planalto. "Esse governo tem algo peculiar e inédito na história da Presidência que é a presença da família dentro da administração", afirma Cláudio Couto, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "Se o presidente politizou a família e a levou para o núcleo do governo, qualquer crise que atinja os filhos atinge o coração do governo", afirma ele.
A expectativa da oposição é que Jair Bolsonaro vai, de fato, enfrentar um "tsunami", com repercussões negativas para sua relação com o eleitorado. "A hora em que a investigação avançar sobre o Queiroz e os milicianos, vai ficar muito difícil não envolver diretamente o presidente da República", diz o deputado federal Ivan Valente (SP), líder do Psol na Câmara.
O parlamentar destaca que Bolsonaro pode se ver envolvido no caso porque uma das filhas de Fabrício Queiroz, Nathalia Queiroz, seria funcionária fantasma em seu gabinete. Reportagens mostraram que Natalha cumpriu, entre 2016 e 2018 e sem faltas, expediente de 40 horas semanais no gabinete do hoje presidente enquanto trabalhava como personal trainer no Rio de Janeiro. Além disso, Michelle Bolsonaro, a primeira-dama, recebeu um depósito em cheque de Queiroz no valor de R$ 24 mil. Segundo Jair Bolsonaro, o pagamento seria referente a um empréstimo feito por ele ao ex-assessor do filho, que é amigo da família há anos.
Randolfe Rodrigues (Rede-AP), líder da oposição no Senado, também vê o presidente afetado. "A minha impressão é que ainda tem muita coisa para vir à tona com essa investigação", diz. O senador lembra que a popularidade do governo é a mais baixa para um início de mandato desde a redemocratização (32% segundo o Datafolha) e que ela tem caído por conta da falta de compromisso com a pauta anticorrupção.
"Esse governo não representa nada de novo na política e tem mostrado titubeio em qualquer medida de combate à corrupção", afirma. "O envolvimento do filho do presidente seria a pá de cal para isso". A reportagem procurou o líder do governo na Câmara, o deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), mas não obteve respostas de sua assessoria.
A possibilidade de não apenas Flávio Bolsonaro se ver fustigado pela investigação, mas também o próprio presidente, pode afetar as relações do governo não apenas com seus eleitores, mas também com o Congresso. "Outro elemento nessa direção seria bastante negativo para o governo em um momento em que os sinais de desgaste político vão se avolumando e os desafios legislativos ficam mais complexos", afirma Rafael Cortez, cientista político da Tendências Consultoria.
O analista lembra que Jair Bolsonaro tem como estratégia questionar a classe política tradicional, mas precisa da cooperação dela para fazer avançar sua agenda econômica. Ao mesmo tempo, afirma, o Congresso busca garantir independência do Planalto, o que pode conturbar ainda mais a situação se o governo ficar fragilizado pelas investigações.
A "vítima" seria a pauta econômica, a começar pela reforma da Previdência. "Há uma percepção de risco elevada entre os parlamentares, e é cada vez mais comum a ideia de que este é um governo centralizador", diz Cortez. "Esta característica ficaria mais forte num cenário em que a Câmara dê apoio à agenda econômica, resultando num Executivo que poderia subordinar o Legislativo", afirma.
Na terça-feira, o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, afirmou que o caso de Flávio Bolsonaro não afeta "de jeito nenhum" o governo. "Nós temos total tranquilidade e temos confiança no Flávio e certeza de que o governo está conduzindo seu trabalho", disse.
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