Caso Snowden põe à prova liberdade de imprensa no Reino Unido
22 de agosto de 2013The Guardian é um dos jornais mais prestigiados do Reino Unido. E, em meio ao escândalo de espionagem envolvendo a americana Agência de Segurança Nacional (NSA) e sua equivalente britânica, o GCHQ, o diário liberal de esquerda fez jus a seu nome.
Na função de "guardião", noticiou sobre as atividades de ambos os serviços secretos, que vêm interceptando em grande escala dados de telecomunicação. A fonte de informação do periódico foi o ex-colaborador da CIA (a agência de inteligência dos EUA) Edward Snowden.
Porém, a iniciativa de divulgar o esquema de espionagem não deixou de ter consequências, inclusive para o próprio Guardian. Segundo o redator-chefe Alan Rusbridger, altos funcionários do governo o teriam pressionado a entregar-lhes dados sensíveis. Ele, porém, se negou a ceder e retrucou: antes destruir as cópias das informações fornecidas por Snowden do que entregá-las à NSA ou ao GCHQ.
O serviço de inteligência britânico obrigou então Rusbridger a eliminar os documentos entregues ao jornal por Snowden, atualmente asilado na Rússia. Na sede do Guardian, dois agentes do GCHQ impuseram e supervisionaram a destruição de dois discos rígidos. O momento foi descrito por Rusbridger como um dos "mais bizarros" da longa história do jornal.
David Miranda em Heathrow
Alvo de intimidação foi igualmente Glenn Greenwald, o jornalista com quem Snowden esteve em contato e que publicou as informações em reportagens para o Guardian. No último domingo (18/08), seu companheiro, o brasileiro David Miranda, foi impedido de seguir viagem no aeroporto internacional londrino Heathrow.
Com base no Parágrafo 7 da lei antiterror inglesa, ele foi detido e interrogado sobre sua família, a situação no Brasil e seu parceiro Greenwald. No entanto, o assunto principal foi o caso da NSA, como revelou Miranda após libertado.
Na Justiça, o brasileiro conseguiu nesta quinta-feira (22/08) uma liminar impedindo que o governo e a polícia britânica “inspecionem, copiem ou compartilhem” os dados apreendidos junto a ele em Heathrow. Polêmica, no entanto, a decisão judicial deixou brechas para que o material seja examinado por razões de segurança nacional.
Tais procedimentos do serviço secreto britânico desencadearam um debate internacional sobre liberdade de imprensa. Segundo o encarregado do governo alemão para assuntos de direitos humanos, Markus Löning, o ocorrido ultrapassou a "linha vermelha".
Ao jornal Berliner Zeitung, Löning disse que os incidentes a ele relatados pro Rusbridger o abalaram profundamente, e a situação da liberdade de imprensa e de opinião no Reino Unido o preocupa.
A ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) classifica o ocorrido em Londres como chicana contra jornalistas investigativos. Os Estados Unidos e o Reino Unido estariam tentando desfazer as redes de contatos por trás das revelações sobre programas de vigilância em ambos os países, comentou à agência de notícias alemã DPA o porta-voz da diretoria da RSF, Michael Rediske.
Ele considera chocante um serviço secreto forçar o redator-chefe de um dos mais importantes jornais ingleses a eliminar material oriundo de um informante. Por outro lado, espanta-se Rediske, é incompreensível que Alan Rusbridger tenha cedido à coação, sem acionar os tribunais e sem levar o fato imediatamente a público.
Razões de Estado
Norbert Bolz, professor de Ciência da Mídia na Universidade Técnica de Berlim, diz que o noticiário sobre as revelações de Snowden constituiriam um caso especial: "Ele difere essencialmente de outras formas de jornalismo investigativo, por se tratar de segredos de Estado", opina.
No campo da informação secreta, interesses de Estado clássicos não são compatíveis com a absoluta liberdade de imprensa. O pesquisador da mídia teme que os governos se sentirão expostos, devido ao próprio "mau jeito em lidar" com as reportagens sobre segredos de Estado, e que, por isso, no futuro venham a alterar sua tática.
A Federação dos Jornalistas Alemães (DJV) também condena o procedimento em relação ao Guardian como uma investida contra a liberdade de imprensa. Na Alemanha, isso não seria possível, afirmou o porta-voz da associação, Hendrik Zörner, à emissora WDR.
"As leis alemãs não permitem que funcionários de um serviço secreto apareçam numa redação e supervisionem a destruição de material de pesquisa", disse Zörner. No país, também já houve batidas em redações, porém em nenhum desses casos o modo de proceder dos órgãos de investigações foi justificado. "Jornalistas têm boas perspectivas de se defender contra esse tipo de coisa."
Falta de proteção para jornalistas
A legislação britânica também contempla a liberdade de imprensa. O país não dispõe, porém, de uma Constituição escrita que confira proteção especial ao trabalho dos jornalistas. As normas relativas à liberdade de imprensa do Reino Unido são menos detalhadas do que as de outras democracias ocidentais e, consequentemente, os juízes dispõem de um maior campo de interpretação para aplicar essas leis.Além disso, existem mecanismos abrangentes de proteção contra a difamação, assim como um grande número de leis de combate ao terrorismo, com potencial de se tornarem em mordaça para a imprensa.
Foi o que ocorreu em junho último, quando o Guardian publicou as primeiras revelações de Snowden. Segundo a emissora alemã NDR, diversos jornais conservadores seguiram a ordem de Londres de que não se noticiasse sobre o caso.
É possível que novos tempos estejam se anunciando. Quer se trate do Independent ou do Daily Mail, da BBC ou do Telegraph, todos estão noticiando sobre o mais recente capítulo do escândalo: o possível envolvimento do primeiro-ministro David Cameron nas tentativas de intimidação contra o Guardian.