Cercado pelo agro, festival de cinema aborda crise ambiental
14 de junho de 2024Debaixo de sol e com um calor acima da média para o mês de junho, cineastas, estudantes, indígenas, professores, políticos e cientistas movimentam as ruas históricas da cidade de Goiás. A antiga capital do estado de mesmo nome recebe há 25 anos o Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), o mais longevo do país dedicado ao assunto.
Os mais de cem filmes tratam de temas sobre tecnologia, inovação e mudanças climáticas. O encontro, que marca a estreia da mostra de cinema indígena e povos tradicionais, acontece no coração do Cerrado – o bioma que ultrapassou a Amazônia em desmatamento. O corte da vegetação nativa na região cresceu 68% em 2023 e acabou com metade de toda a área da conhecida savana brasileira.
Pedro Novaes, diretor de programação do FICA, diz se preocupar com isso. Geógrafo de formação, ele conhece o poder da arte para impulsionar debates difíceis. "A nossa missão hoje é usar as produções cinematográficas para atrair atenção e dar mais relevância para a questão ambiental", afirmou à DW na noite de abertura.
É por isso que, pela primeira vez dentro do festival, um público diferente vai ocupar as cadeiras vermelhas do tradicional cinema da cidade. São 300 alunos entre 10 e 11 anos das redes pública e privada que inauguram o Fórum Infantil sobre Mudanças Climáticas.
"Nós moramos aqui e tínhamos a sensação de que éramos apenas público. Agora, pela primeira vez, finalmente vamos realizar algo", conta Angela Fonseca, professora aposentada que assumiu a missão de organizar o fórum.
Um comitê da esperança
Distante do centro histórico, fundado em 1727 sob domínio da Coroa Portuguesa, os estudantes do 5° ano da escola municipal Cora Coralina estão empolgados com a participação no FICA. Inaugurada em 1986, a escola fica onde era um antigo aeroporto utilizado pelo garimpo ilegal.
Muitos dos alunos nunca assistiram a um filme na telona. Há meses, eles trabalham na escrita de uma carta que será finalizada durante o fórum, nesta sexta-feira (14/07), e entregue no fim do festival, no domingo, ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado.
Fonseca visitou todas as escolas e coordenou a discussão. Mas o texto foi escrito pelos próprios estudantes, que, em suas respectivas salas de aula, discutiram ao longo de meses em qual ambiente desejam crescer.
"Tem que acabar com o desmatamento na margem do rio Vermelho, com as queimadas, com a poluição e proibir as sacolinhas plásticas", pede Ana Julia Santos, de 10 anos, uma das alunas do professor Jefferson Rodrigues, que participa do projeto.
O rio nasce no município e corta o centro histórico. No começo do ano, uma enchente obrigou a remoção de pacientes do hospital. Em 2001, uma grande inundação provocou grandes perdas, até as crianças que nasceram depois conhecem a história.
Já os participantes do fórum que estudam na escola rural do distrito Águas de São João pedem para o governo repensar as licenças para dragas de areia. A atividade, comum na região, contribui para o assoreamento do córrego Bacalhau, importante fonte de abastecimento de água na cidade, mostram pesquisas da Universidade Estadual de Goiás (UEG).
Em Calcilândia, outro distrito, o desejo dos estudantes é de maior controle sobre os agrotóxicos e seus efeitos na saúde humana e com a contaminação das águas. "Mesmo sendo tão jovens, eles ficam preocupados sobre como os filhos deles vão encontrar a natureza", descreve Rosemeire de Moraes Santos, gestora da escola.
"Nossos alunos pediram a criação de um comitê para punir quem polui e quem desmata, e que o valor seja revertido para compra de mudas de espécies do Cerrado", cita Derotina Alvarenga, professora da escola rural Holanda, os temas mais debatidos.
O engajamento surpreendeu até mesmo Fonseca, experiente na área da educação. "Eles vivem e entendem a urgência da crise ambiental e pediram para que o fórum seja permanente. Nós também vamos acompanhar como os pedidos serão tratados pelas autoridades", detalha o trabalho pós-festival.
A carta escrita no primeiro Fórum Infantil entrará numa "cápsula do tempo" e deverá ser lida pelos mesmos participantes daqui a 25 anos. Laura Oliveira, de 10 anos, tem dificuldade em imaginar como será o mundo em 2049. "Eu quero que ele seja melhor, mais limpo, mais verde", afirma.
O marketing como impulso há 25 anos
Em 1999, o Fica nasceu como uma grande jogada de marketing. O então recém-eleito governador Marconi Perillo buscava algo que projetasse Goiás na cena cultural e pessoas consultadas sugeriram um festival de cinema. A escolha pelo tema ambiental se deu quase que por acidente: entre as opiniões consideradas estava a do jornalista e ambientalista Jaime Sautchuk. A história foi relatada por ele mesmo num texto de 2006 para a revista da Universidade Federal de Goiás (UFG). Sautchuk morreu em 2021.
"Naquela época, talvez, a urgência sobre o debate em torno do meio ambiente não fosse tão presente como agora. A cada ano, sentimos que a emergência é maior e que a arte carrega mensagens que provocam esta reflexão ambiental", comenta Novaes, filho do jornalista Washington Novaes, morto em 2020, e um consultor pioneiro do evento.
Desde então, o FICA se transformou no festival de cinema ambiental que atrai cineastas de todo o mundo. Sua única interrupção se deu em 2019, quando Caiado assumiu o governo. O político de família tradicional goiana fundou na década de 1980 a União Democrática Ruralista (UDR), defensora dos interesses de produtores rurais. Sem apoio naquele ano, um grupo da cidade de Goiás decidiu organizar um evento semelhante, de porte menor.
"Em 2019 o festival não foi realizado porque havia muitas dívidas a serem quitadas, deixadas pelo governo anterior. Tanto que, solucionado este problema, no ano seguinte, mesmo com a pandemia, o festival foi retomado de forma on-line", afirmou o governo em resposta.
Desde sua concepção, o FICA é financiado com dinheiro do governo do estado e todas as exibições de filmes, debates, oficinas e shows são gratuitas. Em 2024, o investimento foi de R$ 5,4 milhões, segundo a organização.
Ciência e arte para a vida continuar
Além das obras audiovisuais, a preocupação com a crise climática aparece ao longo de diversos debates da programação. Para Laerte Guimarães Ferreira Junior, professor da UFG e coorganizador do festival, o cenário é propício para se pensar o futuro do bioma.
"O FICA tem que ser um espaço para se discutir as questões ambientais do país e principalmente do Cerrado. É um espaço educativo, de debates, e oferece a possibilidade de usarmos a linguagem audiovisual para comunicar ciência", diz Ferreira Junior.
Esta é uma das missões que o Mapbiomas tenta colocar em prática nesta edição. A iniciativa trouxe para Goiás uma sessão de curtas-metragens que explicam como o solo do país tem sido usado. No estado, 68% do território é ocupado pela agropecuária, com predominância das pastagens e cultivo de soja.
"É uma forma também de comunicar os nossos dados com arte e chegar a um outro público que, no geral, a gente não consegue atingir só com os dados que geramos", pontua Julia Shimbo, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coordenadora científica do Mapbiomas.
Os vídeos e o cinema, acredita Antonio Cruvinel, reitor da UEG, são ferramentas estratégicas também para as universidades colocarem a pauta ambiental na agenda pública. "Não podemos viver apenas do agro. E não queremos expulsar o agro. Mas temos que, juntos, encontrar a harmonia, uma forma para que a vida possa continuar. A cultura não resolve os embates, mas deixa um legado para que o diálogo aconteça", defende.
*A repórter viajou a convite da organização do FICA.