Geografia da desigualdade
26 de novembro de 2006O fosso que divide ricos e pobres em Santiago do Chile se espelha até na geografia da cidade: os bairros ricos estão situados mais no alto, em direção à cordilheira. Os pobres, na parte baixa da cidade. Como na vida real. Entre os "de cima" e os "de baixo" existe um abismo difícil de superar, que protege o status de uns e torna pouco provável, se não impossível, a mudança de posição dos outros. Sobre o próprio abismo encontram-se os malabaristas, na corda bamba, sempre prestes a cair.
Carroceiros da baixa Santiago
Gema ganhou uma moradia do governo, mas não demorou um ano até regressar à sua favela: um aglomerado de barracos feitos de chapas de zinco, papelão e madeira, que se ergue sobre uma montanha de lixo. Perdeu suas quatro paredes, 18m2 para seis pessoas, mas hoje vive mais tranqüila.
"Tive de vir para cá porque Luisito [um de seus quatro filhos] começou a ter ataques epiléticos. O médico me disse que isso vinha do estresse. Como morávamos num bairro muito violento, teria de trancá-lo em casa. Aqui não há o perigo de brigas ou de gente que anda armada. Mas lá se vê muito isso: pessoas sendo agredidas nas ruas. Eu não deixava os meninos ir para a rua, por desconfiança", conta Gema.
É difícil imaginar que exista um lugar pior para morar do que na favela. Mas, desde que voltaram, Luisito não tem mais convulsões. O aluguel de uma moradia no Chile custa em média pouco mais de 140 mil pesos por mês (aproximadamente 200 euros). Quarenta e três por cento das famílias de Santiago têm uma renda mensal inferior a 300 mil pesos (450 euros). Destas, 8,5% dispõem de menos de 160 mil pesos por mês.
"Meu marido é carroceiro. Trabalha catando lixo", explica Gema. Vendendo o que outros jogam fora, ganha em torno de 80 mil pesos por mês. Gema quer que seus filhos estudem. Não espera que cheguem à universidade, mas que pelo menos concluam o ensino fundamental. "Até de empregada doméstica se exige a quarta série", diz.
Só as passagens de ônibus até a escola de seus quatro filhos lhe custariam, na melhor das hipóteses, 57.600 pesos por mês. A poucos metros da favela há um colégio, mas a mensalidade é de 25 mil pesos por criança. Segundo o Programa de Comparação Internacional, o Chile é o país mais caro da América do Sul.
Gema tem a sorte de poder contar com o "tio Luis" e seus funcionários. Eles buscam as crianças para levá-las às aulas e as ajudam com material escolar. Quarenta por cento dos recursos do projeto de "tio Luis" vêm da organização alemã de ajuda infantil Kindernothilfe. Mas, em dezembro de 2006, acaba o financiamento alemão. Por que ajudar, se no Chile não há pobreza?
Artistas do cotidiano na classe média
Em Santiago, o "onde" às vezes tem mais importância do que o "como". Onde se mora, estuda trabalha ou passa as férias. Para a classe alta, trata-se de uma questão de prestígio. Para a classe média, é uma questão de qualidade. Uma qualidade para a qual muitos chilenos trabalham incontáveis horas extras (só 30% dos empregos no Chile são classificados como "decentes" pela Organização Internacional do Trabalho) e fazem empréstimos que os afundam em dívidas.
Na capital chilena, 25,6% dos domicílios têm renda mensal de 400 mil a 500 mil pesos (600 a 750 euros). O orçamento familiar de outros 20% na Grande Santiago oscila entre 600 mil e 1,2 milhão de pesos por mês (800 a 1.700 euros). São as duas faixas de renda que se encontram "acima" dos 43% mais pobres.
Ricardo é administrador de empresas e vive num apartamento de 110m2 que ainda está pagando, no bairro Estação Central. Ele tem dois filhos, um carro e costuma passar no país seus 15 dias de férias garantidas pela legislação trabalhista chilena.
Muitas escolas públicas estão fechando suas portas no Chile. Uma mensalidade num colégio particular de qualidade média chega a custar 180 mil pesos (quase 270 euros). Freqüentar uma universidade pública, como a Universidade do Chile, custa em média de 150 mil pesos por mês (220 euros) – o preço varia de acordo com o curso. E o prestígio varia de acordo com o curso freqüentado.
Os dois filhos de Ricardo freqüentaram escolas privadas e concluíram a universidade. Durante grande parte de sua vida, ele trabalhou 10 horas por dia e se endividou em várias ocasiões, a pior delas quando sua esposa teve câncer. O sistema de saúde também é pago no Chile. Nenhum seguro público ou privado cobre 100% dos custos da assistência, salvo para aqueles que ganham menos de 135 mil pesos mensais. Também neste caso, se possível, o segurado tenta fugir da proteção estatal e refugiar-se num seguro privado.
Os que viajam à Europa
Segundo o Banco Mundial, depois do Brasil, o Chile é o país latino-americano com as maiores desigualdades e se encontra entre as dez nações do mundo com a pior redistribuição da riqueza. Esta é uma das razões pelas quais não foi aceito na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), e é também a única reclamação do Fundo Monetário Internacional contra o Chile, considerado país modelo no continente.
Patricia trabalha na como especialista em segurança na embaixada dos Estados Unidos. Seu marido é corretor de seguros. Eles têm dois filhos, um veículo por pessoa, uma empregada doméstica e moram numa casa de 240m2, construída num terreno de mil metros quadrados em Lo Barnechea, um bairro de classe alta de Santiago. Estão entre os 11,3% dos moradores de Santiago que não enfrentam problemas. Os filhos freqüentaram o Redland School, um colégio particular que cobra 550 euros por mês. As mensalidades da universidade custaram outro tanto.
"Quando os filhos começaram a fazer férias sozinhos e a alugar casa de praia com amigos, nós começamos a viajar. Geralmente vamos três semanas à Europa e depois ficamos aqui por perto", conta Patricia.
Ela considera positivas as privatizações feitas nas últimas décadas. "O Estado é um mau gestor. Mas nem tudo pode ficar nas mãos do setor privado porque alguém precisa se preocupar com a população de baixa renda", diz. Patricia não é a única que defende esta opinião, que reserva ao Estado o papel de "abrigo dos indigentes". "Onde se notou uma mudança nos últimos 30 anos é que não se vê mais gente mal vestida ou mendigando nas ruas, o que me choca muito em outros países", afirma Patricia.
Certamente porque nesta cidade de seis milhões de habitantes cada qual vive em seu reduto. Gema, por exemplo, nunca foi ao centro de Santiago nem ao bairro Lo Barnechea. Ela fica apenas imaginando como vivem os ricos.