Ciclo Bruckner comprova amor dos japoneses pela música
22 de fevereiro de 2016Toshiaki Harada, professor de inglês em Tóquio, pagou o equivalente a mais de 1.700 euros para assistir às nove sinfonias de Anton Bruckner (1824-1896). Porém o investimento parece ter valido a pena: "Foi uma experiência única e emocionante", resume o docente da Universidade Showa.
Para os japoneses, a música clássica é um bem valioso e caro: o ingresso mais barato para um concerto passa de 100 euros.
O crítico musical Atsuya Funaki também se mostra empolgado. "Um ciclo bruckneriano perfeito, com uma orquestra altamente motivada", comenta. Ele decidiu estudar alemão aos 12 anos de idade, ao escutar a primeira palavra do Réquiem alemão de Johannes Brahms: Selig – abençoados.
Essa foi a primeira vez, na história do Japão, que todas as sinfonias do compositor austríaco foram executadas em forma de ciclo. Um dos principais responsáveis pela iniciativa é Isao Hirowatari, de 75 anos, que, após promover concertos durante décadas, atualmente ensina gestão cultural na Universidade Showa.
"Eu sabia que Daniel Barenboim não queria mais se apresentar no Japão, pois ele sofre muito com o jet lag. Mas a ideia de executar todas as sinfonias de Bruckner o convenceu", revela Hirowatari.
Risco antecipado
Nesta integral das sinfonias de Bruckner, o maestro Barenboim regeu a Staatskapelle Berlin com grande energia – mas também confiança. Após mais de 20 anos de cooperação, a orquestra e seu titular são como um único organismo. Ainda assim, os ensaios antes – e mesmo durante – essa turnê no Japão foram especialmente intensivos.
Já famoso como pianista bem antes de começar a carreira de regente, o músico nascido na Argentina iniciou parte das apresentações com um dos concertos para piano e orquestra de Wolfgang Amadeus Mozart, também atuando como solista. Sua concepção dessas obras tende a ser romântica, e é muito pessoal.
Mas a grande atração permanece sendo Anton Bruckner. Admirador ardoroso de Richard Wagner, Bruckner enfrentou em vida, com suas vastas obras sinfônicas, a resistência de parte do público e da crítica. E ainda hoje é frequentemente reduzido a apenas duas ou três de suas sinfonias.
"Estava claro para nós que um ciclo desses é um risco", admite Shintaro Tanaka, um dos promotores do empreendimento musical inédito. Mas o público japonês ficou fascinado – por Bruckner e por Barenboim. Prova disso são os, em média, 20 minutos de aplausos de pé que concluem cada concerto. E em seguida dezenas de entusiastas da música erudita formam fila à saída dos artistas, esperando pacientemente pelo maestro. O qual, com a mesma paciência, começa a distribuir autógrafos assim que deixa o auditório.
Viagem de grupo – em ordem cronológica
Os que compraram ingressos para o ciclo completo têm direito a assistir a alguns ensaios. Durante um deles, Barenboim justifica a opção de apresentar as nove sinfonias em ordem cronológica: ele queria que tanto o público quanto os músicos tivessem a chance de acompanhar a evolução do compositor, como numa viagem em conjunto.
"Quando se vivenciam duas ou três sinfonias de Bruckner, percebem-se os pontos em comum. Mas quem escuta o ciclo integral reconhece também as diferenças", explica o maestro.
A tradutora-intérprete Akiko Matsuda, que já acompanhou Herbert von Karajan, Carlos Kleiber e outros regentes de renome em seus giros pelo Japão, tem uma explicação para o valor que se dá no país à música erudita europeia: após a Segunda Guerra Mundial, as aulas de música nas escolas do país passaram a se concentrar inteiramente na produção ocidental. No processo, a rica tradição musical nacional ficou praticamente soterrada, e só pouco a pouco a música ritual das cortes japonesas volta a ser lembrada, diz Matsuda.
Música sem tosse nem pigarro
O professor Hirowatari, por sua vez, situa já no último terço do século 19 o início do amor dos japoneses pela música erudita europeia. Durante a Revolução Meiji, ordenada de cima para baixo, a nação até então isolada teria se aberto para o Ocidente – também no aspecto cultural, apesar de a motivação primária ter sido econômica.
Como os primeiros professores de música erudita vinham da Alemanha, o país foi adotado como modelo. "Os japoneses adoram a música clássica alemã e austríaca por ela ser tão emocional", analisa o Matthias Glander, clarinetista solista da Staatskapelle Berlin. "Afinal de contas, o dia a dia aqui é extremamente regulamentado."
Barenboim, que já fez um total de 16 turnês pelo país como pianista e regente, comemora agora os 50 anos de sua relação profissional com o Japão. Ele louva a seriedade e atenção com que o público local se dedica à música: aqui ela é tratada com um respeito cada vez mais raro na Europa.
De fato, a plateia escuta com toda concentração e em absoluto silêncio. Nada das usuais tosses e pigarros: quem está resfriado vai ao médico, não a um concerto. Após o movimento final da Nona sinfonia, o aplauso parece não ter fim. Para Bruckner, essa era uma "despedida da vida". Para a Staatskapelle Berlin, o encerramento de uma ousada aventura artística em Tóquio.