"Colonização deixou cicatriz no DNA do Brasil"
26 de dezembro de 2024Um projeto que está mapeando o genoma de milhares de brasileiros com idades entre 35 e 74 anos aponta que o DNA dos pesquisados apresenta uma prevalência de cromossomos Y – herdados dos pais – de origem europeia.
Desde 2019, quando foi iniciada, a pesquisa "DNA do Brasil" sequenciou cerca de 3 mil genomas brasileiros. "Encontramos poucos cromossomos Y de ancestralidade indígena. Isso é uma marca que foi deixada da nossa colonização. Por outro lado, quando olhamos para o DNA mitocondrial, que herdamos da nossa mãe, ele está muito melhor distribuído: um terço europeu, um terço africano e um terço indígena. Mas a parte paterna é predominantemente europeia", afirma a cientista, professora e pesquisadora Lygia da Veiga Pereira, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP.
"Isso é uma cicatriz de uma colonização, de um povo dominante sobre povos dominados."
Pereira lidera a pesquisa. O objetivo do estudo é aumentar a representatividade da população brasileira nas pesquisas globais sobre o tema. O motivo: as características genéticas dos brasileiros divergem, em grande parte, das de povos de regiões mais avançadas nesses estudos, a exemplo de América do Norte, Europa e Ásia.
Além da predominância de pais europeus, as respostas preliminares mais recentes do estudo também indicam uma mistura de DNAs africanos em solo brasileiro de povos que não se cruzaram na África.
O mapeamento tenta identificar variações genéticas relacionadas às características de saúde da população, trazendo mais conclusões sobre a biologia humana e doenças que futuramente poderiam ser prevenidas e melhor tratadas.
O estudo também pretende investigar a identidade do brasileiro, detectando componentes genéticas que ajudem a entender melhor a história e a evolução do povo do país.
No fim de 2019, logo depois de o projeto ter sido lançado, Lygia afirmou em entrevista à DW que o Brasil detém, provavelmente, o mapa genético mais miscigenado do mundo, devido às suas distintas ancestralidades – africana, indígena, asiática, árabe, europeia.
"O meu rigor [científico] me impede de dizer que é a mais miscigenada. Sigo no meu 'provavelmente'", reitera, em nova conversa com a DW.
DW Brasil: Logo depois que o projeto DNA do Brasil foi lançado, em dezembro de 2019, veio a pandemia de covid-19. O quanto o projeto avançou e evoluiu de lá para cá?
A pandemia atrapalhou e atrasou bastante o projeto. Existia toda uma intenção de o Ministério da Saúde aumentar rapidamente os recursos para o projeto porque inicialmente havia uma verba para começar [as pesquisas], mas com a pandemia isso tudo atrasou.
Está para sair um artigo descrevendo os resultados dos 3 mil primeiros genomas brasileiros sequenciados. E o ministério nos deu uma verba adicional para sequenciar mais 6 mil genomas que a gente está fazendo este ano e deve terminar no ano que vem.
O ministério também está financiando outros grupos de pesquisa que estão sequenciando genomas de diferentes grupos de brasileiros, alguns com doenças específicas, outros são brasileiros de alguma região específica...
Para o DNA do Brasil, resolvemos focar em diversidade. Nessa segunda fase do projeto, há um esforço para ter subpopulações de diferentes regiões do país. Na primeira fase, nesses primeiros 3 mil genomas, dependendo da região, você vai ter mais frações de populações com maior ancestralidade genética africana, ou indígena, ou europeia.
Queremos conhecer e saber como é a população brasileira como um todo. Por isso, agora estamos observando gente do Sul, do Centro-Oeste, do Norte, do Nordeste, populações quilombolas, populações ribeirinhas, a fim de focar na caracterização da nossa diversidade.
No início do projeto, o DNA do Brasil queria: incluir o Brasil no mapa dos estudos genômicos realizados no mundo e aumentar a representatividade da nossa população; identificar variações genéticas relacionadas às características de saúde da população; e estudar a nossa identidade, detectando componentes genéticos de nativos americanos, ameríndios e africanos para entender melhor a nossa história e a evolução do povo brasileiro. Esses objetivos foram alcançados?
Essas coisas são investimentos a longo prazo. De fato, iniciamos esse primeiro objetivo, que é aumentar a representatividade e colocar o Brasil no mapa de projetos de genomas de populações. Mas estamos apenas começando. Até o meio do ano que vem, teremos 10 mil genomas brasileiros sequenciados. O Reino Unido, por exemplo, tem 500 mil. É esse número que precisamos alcançar.
Quanto ao segundo objetivo, precisamos que essa plataforma esteja grande para começar a ter poderes estatísticos para alcançar as descobertas. E isso é outro investimento a longo prazo.
Em relação ao terceiro objetivo, começa-se a desvendar isso. Esse artigo que a gente vai publicar foca justamente nessa parte de entender como é que os genomas indígenas, europeus e africanos se misturaram para dar origem à população brasileira atual, e que marcas da história da formação da nossa população estão no nosso DNA.
E que marcas são essas?
Por exemplo, uma coisa super interessante é quando olhamos o cromossomo Y. Em torno de 75% dos cromossomos Y desses três mil brasileiros que sequenciamos têm origem europeia. Encontramos poucos cromossomos Y de ancestralidade indígena. Isso é uma marca que foi deixada da nossa colonização.
Por outro lado, quando olhamos para o DNA mitocondrial, que herdamos da mãe, ele está muito melhor distribuído: um terço europeu, um terço africano e um terço indígena. Mas a parte paterna é predominantemente europeia. Isso é uma cicatriz de uma colonização, de um povo dominante sobre povos dominados.
É super interessante, também, que encontramos misturas de DNA africanos, de povos de diferentes regiões da África que nem se encontram na África. Esses DNAs se misturaram aqui no Brasil, essas pessoas foram trazidas para cá e se misturaram.
E do ponto de vista médico, por que estudar o genoma do brasileiro?
A partir desses genomas podemos ver com que frequência as variantes genéticas que encontramos existem na nossa população. E isso é muito importante para ajudar na interpretação de testes genéticos.
Vamos imaginar um caso de câncer de mama. A pessoa sequencia o gene BRCA1, um gene importante em se tratando de câncer de mama, e o geneticista encontra uma variação. E aí ele vai se questionar: será que essa variação causa doença ou não? Uma maneira de se ver isso é saber se aquela variação é frequente na população. Se for frequente, provavelmente não causa doença. Se for uma variante muito rara, acende uma luz amarela.
Mas e quando um brasileiro faz esse teste? O geneticista vai comparar com os bancos de dados e percebe que essa variante nunca foi descrita num banco de dados. Mas por quê? Pelo fato de a pessoa ter uma ancestralidade indígena ou africana, e os bancos de dados serem todos de população branca, e, assim, nós não temos esse conhecimento. Por isso é importante saber como é a frequência dessas variações genéticas na nossa população.
Em 2019, a senhora disse que o brasileiro, por ter ancestrais indígenas, africanos, europeus e asiáticos, tinha, provavelmente, o DNA mais miscigenado do mundo. Esse "provavelmente" já pode ser retirado, ou seja, essa informação já pode ser confirmada?
Eu vou seguir dizendo "provavelmente" porque a gente não sequenciou o genoma de todas as populações mundiais. Mas do que conhecemos hoje em dia de genomas humanos, a população brasileira é das mais miscigenadas. Agora, conhecemos muito pouco ainda, e, por isso, o meu rigor me impede de dizer que é a mais miscigenada. Sigo no meu "provavelmente".
Como vocês conseguiram os dados para o estudo?
Fizemos parcerias e colaborações com grupos acadêmicos que já vinham estudando a saúde de diferentes grupos de brasileiros. Esses brasileiros já estavam participando desses estudos. O que a gente fez foi adicionar o sequenciamento do genoma dessas pessoas. O recrutamento das pessoas já tinha sido feito lá atrás.
É possível dizer que há um brasileiro nato?
[Risos] Nós todos somos brasileiros natos. Não, não existe um brasileiro [específico]. Como é o DNA do brasileiro? Vai ser diferente mesmo dentro de cada região. Agora, se eu observar o DNA de uma pessoa que é uma mistura de indígena, africano e europeu, eu vou desconfiar que é brasileiro. Tem brasileiro que não é misturado, mas, se for muito misturado, eu vou achar que é brasileiro.
Há também a mistura de africanos que não se encontram na África; essa gente se encontrou no Brasil. A África é um continente, então tem gente na África que não se encontra e não se mistura, mas, como foram trazidos, escravizados, de diferentes regiões, esses DNA se misturaram aqui. E você não encontra eles misturados na África, por exemplo.