"Com as armas abaixadas, diálogo no Brasil é possível"
21 de setembro de 2021Ovacionado por dez minutos após a exibição, o filme Deserto Particular, do cineasta brasileiro Aly Muritiba, faturou o Prêmio do Público no 78º Festival de Cinema de Veneza e, automaticamente, tornou-se um dos favoritos para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de melhor filme internacional, no ano que vem.
Com lançamento comercial previsto para novembro, o longa ainda deve cumprir uma agenda extensa em festivais. Já está confirmado no de Huelva, na Espanha, e no de Thessaloniki, na Grécia, além da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Muritiba ainda avalia convites para festivais nos Estados Unidos.
Ao contar a história de Daniel, um policial militar de família conservadora em Curitiba que decide viajar pelo Brasil para encontrar seu amor, Sara, no sertão baiano, Muritiba faz, como ele mesmo diz, "um mergulho num Brasil profundo, tanto o do Sul quanto o do Norte". Ao mesmo tempo, reencontra-se com suas origens: Sobradinho, às margens do Rio São Francisco, onde parte do filme foi rodado, é a terra natal do diretor; Curitiba é onde ele mora.
Mas, percorrendo os diferentes brasis, o filme apresenta inevitáveis choques entre moralismo e liberdade. É quando aparecem em cena, de forma suave, mas pungente, o ambiente persecutório e de ódio, ora representado pela formação militar de Daniel, ora pela religião. "Certos grupos conservadores podem ficar indignados", admite ele. "Não tenho medo dessa reação."
DW Brasil: O sucesso em Veneza fez com que o filme passasse a ser listado como aposta do Brasil para a disputa do Oscar. De que forma você encara esse favoritismo?
Aly Muritiba: Fico feliz com a recepção que o filme vem recebendo e pela curiosidade que está levantando. Acredito, de verdade, que o filme tenha as características importantes para figurar entre os escolhidos [a representar o país no Oscar]. É um filme que conta uma história de encontro, uma história de amor, que tem um final positivo, extremamente bem atuado e com direção de fotografia e arte lindas. E toca em várias questões, mas em uma importante, que é a das minorias. É um filme que aborda uma pessoa da comunidade LGBTQIA+, de gênero fluido, vivendo sua vida e tentando viver sua vida. Com realismo, o cinema costuma abordar essa comunidade, que sofre tanto, com personagens que se dão mal também na tela. Deserto Particular apresenta uma perspectiva positiva disso, e acho que isso torna o filme bastante relevante.
O filme escancara o choque entre conservadorismo moral e questões de gênero. Ao escolher um militar para representar o primeiro grupo, não caiu em uma generalização?
Foi uma escolha bastante arriscada, tendo em conta que os militares não são muito bem vistos, principalmente em nosso meio, o meio artístico, cinematográfico. Mas como eu queria falar de tolerância, era muito importante que eu escolhesse um personagem como esse, para nós entendermos ao longo da narrativa que uma pessoa criada num ambiente tão conservador pode também abrir sua perspectiva para outras formas de afeto, de amor. Acredito genuinamente que se estivermos abertos ao diálogo, com as armas abaixadas, é possível travar contato, conversar e estabelecer relações com pessoas conservadoras, assim como imagino que existam pessoas conservadoras que estão abertas a conhecer e se relacionar com pessoas progressistas. Então não tive medo de generalização, não. Sempre soube que era um desafio dar conta de um personagem dessa natureza, e que era relevante fazer com que o espectador sentisse empatia pelo Daniel, para poder segui-lo em sua jornada de transformação.
Mas você tem receio de como os grupos mais conservadores vão reagir, quando o filme romper a bolha dos cinéfilos, ao verem que o retratado é um PM?
Certos grupos conservadores podem ficar indignados. Mas acho que essas pessoas que por ventura fiquem indignadas ainda não estão abertas e prontas para uma trajetória de amor e afeto. Um dia podem se abrir a isso. Não tenho medo dessa reação.
De que maneira Daniel representa o ambiente de discursos de ódio do Brasil atual?
Ele representa um sujeito que cresce nesse meio persecutório e conservador. Mas tem dentro de si, embora sem consciência disso, um desejo muito grande de romper esse ciclo de ódio. Ele tem a capacidade e o desejo inconsciente disso. Acredito que existam muitos Daniéis e Danielas, muitas pessoas criadas e formadas nesses ambientes extremamente conservadores, com possibilidade muito grande de transformação, de mudança, de abandonar o ódio, de trocar o ódio pelo afeto e pelo amor.
Robson, o personagem que ele encontra em sua busca por Sara, é uma vítima da homofobia, alguém que não consegue assumir sua sexualidade e está o tempo todo enfrentando os próprios fantasmas. Em sua opinião, o que é preciso para que tantos Robsons possam ser livres em suas essências?
Acredito que se criássemos políticas públicas de proteção, de conscientização, de educação para a tolerância, se tivéssemos uma formação continuada para a tolerância de modo a normalizar, não normatizar, todas as formas de ser e estar no mundo, de afeto, de amar e de amor, as coisas podem ficar muito mais fáceis para todos nós. Já tentamos isso no Brasil antes.
Ao promover um encontro de Curitiba com o sertão nordestino, sua intenção foi se apropriar do clichê, desses antagonismos norte-sul, para levar às telas a metáfora do Brasil real?
De fato, o filme faz esse mergulho num Brasil profundo, tanto o do Sul quanto o do Norte. O Brasil conservador, o Brasil que tem um desejo grande por liberdade. Eu adoro os clichês e acho que nesse sentido o clichê é muito bem-vindo. Acredito que estamos vivendo um período tão conturbado que Deserto Particular vai servir como respiro, como sopro, como sorriso. A audiência vai se sentir grata por estar vendo um filme em que mesmo em meio a tantos percalços e tanta dor, raiva e preconceito, pessoas descobrem jeitos de sorrir, de amar e de viver suas vidas de maneira mais livre. Como todos nós, no fim das contas, queremos ter o direito de viver, amar, respirar e viver de maneira mais livre, acho que o filme servirá como um espelho ou, pelo menos, como uma utopia, uma quimera, um desejo.
Sempre encarei meu ofício como uma profissão de fé. Não consigo me imaginar fazendo um filme que não toque em questões que sejam relevantes para mim e que eu julguei que fossem relevantes socialmente. O cinema que eu faço é engajado. Antes, era raivoso e engajado; agora é amoroso e engajado. Acredito no papel transformador da cultura e da arte. Algumas vezes, ela transforma pelo sorriso, outras vezes, pelo grito, muitas vezes, pelo abraço, pelo amor, pelo afeto. Mas a arte está sempre prenha, está sempre grávida de transformação.