China, EUA e Rússia no Quirguistão
15 de junho de 2010A pior explosão de violência étnica das últimas décadas no Quirguistão já fez mais de 100 vítimas fatais, causou ferimentos em muitos mais e obrigou dezenas de milhares a deixarem suas casas. Contudo, o conflito tem implicações mais amplas, numa região de enorme importância estratégica e geopolítica para as maiores potências mundiais.
O conflito que irrompeu na sexta-feira (11/06) entre os clãs quirguizes e uzbeques – as etnias dominantes no país – pode ter sido desencadeado pela tensão crescente entre os dois grupos. Porém as condições para a luta foram criadas pela instabilidade política no Quirguistão: uma situação que traz decididamente as impressões digitais de três das nações mais influentes do mundo.
Enquanto os Estados Unidos e a Rússia continuam a disputa pela supremacia militar na Ásia Central, a China, que divide 850 quilômetros de fronteira com o Quirguistão, persegue significativos interesses estratégicos e econômicos no país e na região circundante.
Estratégias dos EUA
A insurreição mais recente teve sua origem na deposição do regime pró-Washington do presidente Kurmanbek Bakiyev, que deixou o país em tumulto desde abril último. Combinado à consequente posse de um governo provisório, o fato não só levou as tensões étnicas ao ponto de ebulição, como poderá fazer eclodir um novo conflito pelo controle externo sobre o Quirguistão e pelos benefícios regionais decorrentes.
Com apoio estadunidense, Bakiyev assumiu presidência em 2005. Assim, além de contar com um aliado quirguiz com quem negociar, os EUA fincaram pé num país que certos estrategistas consideram vital para os planos norte-americanos de dominância regional.
Segundo esses especialistas, um objetivo central dos EUA tem sido fortalecer a própria influência sobre os Estados centro-asiáticos da antiga União Soviética, desde o colapso desta, em 1991. A inclusão do Quirguistão e de outros três países da região no programa da Otan Parceria para a Paz, três anos mais tarde, é visto como um importante passo nesse sentido, e que acabou levando ao estabelecimento da base estadunidense em Manas, próximo à capital Bishkek.
"Durante os conflitos de abril, a base aérea de Manas ficou fechada, e uma rota de suprimentos vital para o envio de equipamentos e soldados ao Afeganistão não pôde ser usada. Os EUA precisam de um Quirquistão estável para manter essa rota em funcionamento", analisou para a Deutsche Welle Asher Pirt, especialista em assuntos militares relativos à Ásia Central.
Preocupações da Rússia
Ao mesmo tempo em que Manas segue sendo o eixo central das operações norte-americanas no Afeganistão, ela é também usada como base da Otan: uma situação que irrita e preocupa os russos. Seu temor diante da influência sobre o Leste do antigo oponente da Guerra Fria coloca o Quirquistão no centro de uma disputa pelo poder regional.
Do Quirquistão, o perito em segurança internacional Dex Torrike-Barton falou à Deutsche Welle: "A atual crise é uma forte ameaça à autoridade do governo quirguiz. A liderança provisória ainda está muito fraca. Se a violência se alastrar para além das cidades atualmente afetadas, a consequência pode ser instabilidade política em grande escala".
Tal situação coloca em cheque a própria existência da base de Manas. "Há numerosas facções no Quirquistão que são contra qualquer tipo de presença estadunidense. Se a Rússia ou a Organização do Tratado Coletivo de Segurança [CSTO, aliança de defesa regional composta pela Rússia, Belarus, Uzbequistão, Cazaquistão, Tadjiquistão e Armênia] intervierem, o resultado pode ser o mesmo."
Pipelines e extremismo
A própria Rússia mantém a base aérea de Kant, a 20 quilômetros de Bishkek, assim como uma base naval estratégica no Lago Issyk-Kul. Desde que o pró-americano Bakiyev foi afastado em abril, Moscou tem, previsivelmente, sido o principal apoiador do governo provisório, na esperança de reconquistar influência, no caso de a ordem se restabelecer no Quirguistão.
Embora Washington argumente que sua presença é mutuamente vantajosa – por ajudar a deter a expansão do fundamentalismo islâmico na Ásia Central, e a resolver o problema do Afeganistão – a versão do Kremlin é diferente. Segundo este, os EUA pretenderiam impedir a hegemonia russa e/ou chinesa, assegurando para si recursos energéticos e pipelines.
O Quirquistão é, ainda, uma questão de segurança nacional. "A Rússia deseja uma vizinhança estável. Violência, em especial de dimensão étnica ou religiosa, tem o potencial de contaminar toda a região", explica Torrike-Barton. "A brutalização da comunidade uzbeque no Quirquistão pode fomentar o extremismo islâmico. E não há pesadelo maior do que esse para o Estado russo, ainda às voltas com as forças insurgentes do Cáucaso." Asher Pirt confirma: "Uma região estável, sem tumulto étnico nem extremismo religioso, é uma meta estratégica para a Rússia".
Interesses da China
A China também tem muito com que se preocupar. Seu interesse está tanto em um Quirquistão estável e amigável, quanto em evitar que os EUA dominem a região. Pequim era o principal financiador de Askar Akayev, ex-presidente apoiado por Washington, que, no entanto, o abandonou assim que ele aceitou dinheiro chinês.
A principal arma da China para manter um pé no Quirquistão continua sendo financeira, e, assim como a Rússia, seu interesse é duplo: expandir o máximo possível sua influência na Ásia Central e, ao mesmo tempo, reduzir ao mínimo as chances de os Estados Unidos fazerem o mesmo.
Trata-se ainda de uma questão de segurança nacional. As fronteiras sino-quirguizes correm ao longo dos limites da politicamente sensível província de Xinjiang, onde, em julho de 2009, houve a revolta da etnia uigur.
"O Quirquistão é o mercado exportador número um para Xinjiang", analisa o especialista Torrike-Barton. "Trata-se de uma destinação lucrativa para as mercadorias e a mão-de-obra chinesa; portanto há uma dimensão econômica importante ligando os dois países. Mas, como no caso da Rússia, a principal preocupação chinesa é a segurança. Um Quirquistão instável, com uma população muçulmana recalcitrante, não ajuda a China a preservar a paz em Xinjiang e entre a comunidade uigur."
Influência global
Outra fonte de preocupação ainda mais séria é a permeabilidade da fronteira sino-quirguiz. Esta tem permitido ao serviço norte-americano de inteligência realizar operações desestabilizadoras secretas na província estrategicamente vital e politicamente frágil de Xinjiang. Pequim acredita que o fluxo de pessoas entre os países seja um disfarce perfeito para as ações dos Estados Unidos.
Segundo Torrike-Barton, é improvável que os chineses venham a intervir na crise do Quirquistão. "Apesar de seu status de financiadora de diversos políticos quirguizes, ela tem capacidade limitada para influenciar a presente situação. Sem um maior empenho dos chineses em aplacar a violência, duvido que haja muitas repercussões nas relações sino-americanas."
Com tanta desconfiança e jogos de poder entre as nações mais poderosas do mundo, é possível que o futuro do Quirquistão venha a ter grande influência não só sobre a região, como sobre a política global.
Autoria: Nick Amies / Augusto Valente
Revisão: Roselaine Wandscheer