Crime organizado aposta na falsificação de bebidas no Brasil
23 de dezembro de 2024A circulação de bebidas alcóolicas adulteradas no Brasil vem aumentando nos últimos anos, com analistas apontando uma crescente presença do crime organizado em um negócio que movimenta bilhões de reais. Além do tradicional uísque, bebidas que se tornaram populares no país recentemente, como o gim e o vinho, passaram a ser destaque nas falsificações.
Estimativas apontam que, no caso de destilados, até 36% do mercado do país é composto por bebidas falsificadas. No ano passado, as bebidas ultrapassaram o cigarro como produto mais falsificado do Brasil.
Normalmente, produtores de líquidos mais baratos vendem aos falsificadores, que adulteram rótulos e fazem um envase como se fossem as originais, explica Rodolpho Ramazzini, diretor da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF). Segundo ele, anteriormente, os responsáveis por estes esquemas eram pequenos comerciantes, mas o crime organizado encontrou neste meio um grande negócio nos últimos anos, mudando a escala do problema.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2022, o crime organizado obteve receita de R$ 56,9 bilhões apenas com a fabricação de bebidas falsificadas. Como comparação, o valor é maior do que o faturamento da maior cervejaria do país, a Ambev, no mesmo período R$ 42,6 bilhões.
Os produtos usados por falsificadores são variados, mas, de maneira geral, o consumo de bebidas adulteradas pode causar graves problemas de saúde, incluindo dores de cabeça intensas, problemas de visão, cegueira, fraqueza muscular e tontura, podendo levar até à morte. Em alguns casos, as bebidas alcoólicas podem ser adulteradas com metanol, que tem aparência e sabor semelhante ao do álcool, mas que pode ser fatal.
Avanço nos últimos anos
Especialistas apontam os comércios pequenos como lugares com maior risco de venda de produtos adulterados, mas o avanço da lucratividade do setor ameaça até mesmo os produtos oferecidos em estabelecimentos maiores. A recomendação é observar eventuais anomalias nos rótulos e evitar o consumo em caso de sabor fora do padrão.
De acordo com Ramazzini, os comerciantes que vendem os produtos falsificados costumam saber da origem ilícita, já que adquirem a bebida por um preço mais baixo que o de mercado. No entanto, a expansão da atividade pode ocasionar casos de corrupção, na qual, por exemplo, um funcionário de um grande estabelecimento que lida com fornecimento obtenha vantagem caso adquira produto dos falsificadores.
Nos últimos anos, houve um aumento no número de fábricas clandestinas fechadas no Brasil. Em 2020, a ABCF registrou que 12 estabelecimentos de falsificação foram fechados, número que passou para 44 em 2021, avançou para 56 em 2022 e chegou a 78 em 2023. Neste ano, já foram 70.
"A raiz do problema é falsa sensação do consumidor de estar levando vantagem ao comprar uma bebida a preços muito abaixo da realidade em um momento de perda de poder de compra", afirma Eduardo Cidade, presidente da Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD).
"Outro fator que está fazendo com que a falsificação cresça ainda mais é a impunidade. Hoje, um falsificador, que utiliza álcool impróprio para consumo humano, usa essências industriais cancerígenas e faz isso em um ambiente imundo, não é punido", aponta Cidade. "Quando um falsificador é pego, sempre responde em liberdade e a pena máxima é prestar serviços à comunidade. Como o lucro é alto, e a justiça não atua na medida certa, o crime compensa", conclui.
Falta de rastreabilidade
Ramazzini aponta a falta de rastreabilidade como uma questão fundamental para o avanço. "A grande razão que encontramos é a falta de atividade do Sicobe, um monitoramento criado em 2009, que foi um golpe no crime organizado", afirma.
Em 2016, um ato administrativo fez com que o Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe), que é ligado à Receita Federal, deixasse de operar. "Como resultado, o governo não tem mais o controle do volume de bebidas circulando no país, o que impulsionou muito a sonegação", afirma o especialista, que estima em até R$ 30 bilhões por ano o que o governo deixa de arrecadar sem o sistema.
Segundo a Receita Federal, o custo do religamento do Sicobe é estimado em R$ 1,8 bilhão anuais, para uma arrecadação tributária de aproximadamente R$ 13 bilhões em 2023. O alto investimento é justificado como uma razão para haver maior "cuidado na análise" da retomada, de acordo com o órgão.
Recentemente, o Tribunal de Conta da União (TCU) considerou ilegal a decisão de interromper o mecanismo de fiscalização, e determinou que o Sicobe voltasse a operar, o que virou alvo disputa judicial, já que a Receita recorreu da decisão. O argumento foi de "interferência indevida no exercício de poder discricionário conferido ao Poder Executivo Federal".
Expansão do crime organizado
Ramazzini avalia que o crime organizado percebeu o setor desorganizado e passou a apostar cada vez mais nesta alternativa, que tem menos riscos em comparação com outras atividades ilegais.
"O crime organizado busca explorar mercados cujos produtos sejam comercializados no atacado em grandes volumes, mas que no varejo tenham uma distribuição fracionada e baixa regulação e fiscalização pelo poder público", afirma o diretor-presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima.
"A bebida é, portanto, uma commodity na economia do crime. Ela tem a vantagem de ser um produto legalizado, cuja distribuição é nacional e que envolve uma enorme gama de fornecedores de matéria prima, produtores, distribuidores e pontos de venda", acrescenta.
Em sua visão, um mercado, como o de bebidas, serve tanto para gerar receitas, quanto para operar em sinergia com a distribuição de produtos ilícitos em pontos de venda controlados pelo crime – como cigarros ilegais, jogos de azar ou drogas – e como forma de lavar dinheiro e bens. Segundo ele, os recursos podem ser reinvestidos em outras atividades, como o tráfico de drogas.
O diretor avalia ainda que a corrupção hoje encontra terreno fértil ao perceber que o mercado de bebidas é pouco regulado e fiscalizado na ponta final. "Não temos controle sobre a produção. E, quando tivemos, o foco era exclusivamente tributário ou, no máximo, na saúde pública. O Estado não se preocupa com os efeitos dessa baixa regulação e fiscalização em relação ao fortalecimento das facções e do crime organizado", conclui