Crise faz Crimeia reviver tensão histórica
28 de fevereiro de 2014Quando, em dezembro do ano passado, o presidente Vladimir Putin foi questionado se a Rússia enviaria tropas à península da Crimeia, respondeu de forma contundente: "Isso é uma completa estupidez". Mas, em meio à atual crise ucraniana, é a sua declaração que parece não fazer mais sentido.
Nesta sexta-feira (28/02) havia sinais de que tropas das Forças Armadas russas estariam se deslocando para a Crimeia. O presidente em exercício da Ucrânia, Oleksander Turchinov, acusou Moscou de agressão e provocação e comparou a situação na península ucraniana à que antecedeu a guerra na Ossétia do Sul em 2008.
História turbulenta
A península no Mar Negro, que tem território equivalente à metade da Suíça e clima comparável ao da mediterrânea Côte d'Azur, é dona de um passado turbulento. Os povos nômades citas, gregos, tártaros e turcos dominaram a região da Crimeia durante séculos, até a chegada dos russos.
"A Crimeia sempre foi a menina dos olhos do Império Russo", explica Wilfried Jilge, especialista em Leste Europeu da Universidade de Leipzig, na Alemanha. Segundo ele, o sonho dos czares russos era ter acesso ao Mar Negro – o que foi concretizado por Catarina, a Grande. Em 1783, a Crimeia foi anexada ao Império Russo.
Apenas em 1954 a península foi incorporada administrativamente à Ucrânia, então parte da antiga União Soviética, por iniciativa do então chefe do Partido Comunista, Nikita Khrushchev.
Após a queda da URSS, a Crimeia passou integrar a independente Ucrânia. A situação gerou forte tensão, pois cerca de dois terços da população da península tem origem russa. Em 1992, o Parlamento russo considerou inválida a decisão de Khrushchev, e a Crimeia declarou sua independência do governo ucraniano.
Coube a Kiev acalmar os ânimos na região. Em 1994, porém, os conflitos voltaram a se acirrar. Yuri Mechkov foi eleito presidente da Crimeia e voltou a alinhar a região com a Rússia. Mas desta vez, a Ucrânia conseguiu manter a Crimeia sob sua tutela. Mechkov foi retirado do poder e fugiu para território russo.
A disputa entre Rússia e Ucrânia pela divisão das frotas do Mar Negro, porém, durou até 1997, quando os dois lados assinaram um acordo. Ficou acertado que Moscou retiraria suas tropas da Crimeia até 2017. Sob a presidência de Victor Yanukovytch, porém, o acerto foi esticado para 2042.
Interesse geopolítico
Para Gwendolyn Sasse, especialista em Leste Europeu da Universidade de Oxford, no Reino Unido, a situação atual remete aos acontecimentos de 20 anos atrás. Com a diferença de que os separatistas da Crimeia não são "tão bem organizados" como nos anos 1990, compara.
Sasse fala de uma "tentativa espontânea" de tirar proveito da crise política da Ucrânia, pois, segundo ela, não há um grande plano russo para realmente separar de vez a república autônoma da Ucrânia.
"Isso poderia ir bem longe, porque a Rússia não está pronta para aceitar a livre decisão da Ucrânia de ter eleições próprias", avalia Wilfried Yilge.
Para o especialista, Moscou encara o movimento oposicionista da Ucrânia como uma questão geopolítica. Caso a Ucrânia passe a integrar a União Europeia, diz Yilge, o projeto de Putin de uma união das ex-repúblicas soviéticas ficaria ameaçado.
Maioria pró-Rússia
Não existem pesquisas de opinião recentes que revelem como a população da Crimeia enxerga seu futuro. Mas há dados que mostram essa percepção indiretamente. Segundo um levantamento de junho do ano passado, apenas 31% dos moradores da Crimeia apoiam a Ucrânia como um Estado independente. Outros 36% são contrários – em sua maioria russos.
Também há ucranianos e tártaros vivendo na Crimeia que rejeitam qualquer separação. Em 1944, Stalin mandou deportar povos tártaros da Crimeia para a Ásia Central por eles supostamente terem colaborado com o regime nazista durante a Segunda Guerra.
Há pelo menos 20 anos os tártaros começaram o movimento de retorno à Crimeia. Atualmente a comunidade de 300 mil pessoas já responde por 14% da população. "Os tártaros da Crimeia são tradicionalmente pró-Ucrânia e enxergam seu futuro em um Estado ucraniano", pontua Yilge.
Acordos de gás e petróleo
Mas não apenas questões políticas estão em jogo na Crimeia. Caso essa região realmente se separe da Ucrânia, será um grande golpe para a economia do país. A principal fonte de renda da península até agora é o turismo – mas isso deve mudar em breve, pois há expectativas de exploração de grandes reservas de gás na região.
O governo da Ucrânia planejava assinar até 2013 um acordo com um consórcio internacional, liderado pela gigante americana ExxonMobil, para produção de gás e petróleo no Mar Negro. Mas a assinatura do contrato acabou sendo postergada.
A partir de 2017, cerca de 10 bilhões de metros cúbicos de gás devem ser produzidos, segundo expectativas do Ministério ucraniano de Energia. Isso iria reduzir substancialmente a dependência dos ucranianos do gás que vem da Rússia.