"Culturas não têm fronteiras rígidas, elas se misturam"
11 de outubro de 2004DW-WORLD: Como você vê esta Feira do Livro de Frankfurt, que se diz uma tentativa de diálogo do Ocidente com os países árabes. Como você avalia essa volta dos olhos ocidentais para os países de língua árabe?
Milton Hatoum: Acredito que esse seja um diálogo importante, fundamental para a compreensão das duas culturas. As pessoas devem saber que as culturas não são estanques, não têm fronteiras rígidas, mas sim são vasos comunicantes. Há um discurso da extrema direita, que tenta separar radicalmente as culturas. Essa é a idéia, por exemplo, de um dos teóricos do Pentágono, Samuel Huntington, que fala do "choque das civilizações". Sua posição teve inclusive como resposta um ensaio importante do Edward Said, editado no Brasil dentro do volume Reflexões sobre o Exílio. Esse choque é um choque de ignorância, de um discurso que defende interesses do Ocidente, no caso dos EUA, para criar uma hegemonia cultural. E, no entanto, as culturas sempre foram misturadas.
Já que estamos na Alemanha, podemos citar Goethe como um dos grandes exemplos dessa compreensão, dessa assimilação da cultura do Outro, da cultura árabe em especial. O Divã Ocidental-Oriental (West-östlicher Diwan, 1819), é baseado nos poemas de Hafiz, um poeta persa. Sabe-se que Goethe leu o Alcorão quando jovem e escreveu esse grande poema sobre a relação do Ocidente com o Oriente. Essa troca vem acontecendo há muito, desde Dom Quixote, o romance fundador da literatura do Ocidente: o autor ficcional do Dom Quixote é um historiador árabe – Cide Hamete Benengeli. Cervantes já entendia que a Espanha seria mais pobre sem as culturas árabe e judaica.
Enfim, acho o tema da Feira interessante, importante para os dias de hoje, um tempo em que os radicalismos de todos os lados estão muito arraigados. E isso é perigoso. Notei que há muitas editoras de língua alemã interessadas na literatura de língua árabe. Há a editora suíça Lenos, que tem publicado uma coleção importante de autores árabes. Essa é a minha visão um pouco superficial, eu diria, porque não vim a Frankfurt como escritor árabe. Nem falo árabe. Sou um brasileiro de origem parcial libanesa. E no Brasil, como você sabe, não existe essa classificação de etnias. Não somos ítalo-brasileiros, sino-brasileiros ou árabe-brasileiros. Somos simplesmente brasileiros.
Há passagens em seu livro "Dois Irmãos", em que você descreve o convívio em Manaus de imigrantes árabes (sírios e libaneses) e judeus vindos do Marrocos. Essa coexistência pacífica entre várias etnias, você acha que isso é um fenômeno tipicamente brasileiro? Uma forma de devorar outras culturas tornando-as simplesmene brasileiras?
Isso talvez ocorra também em outros lugares, não sei. Eu, pessoalmente, já vivi em outros países onde isso não acontece. No caso do Brasil, houve uma mestiçagem na origem da formação da sociedade. Nós não somos uma sociedade branca ocidental. Longe disso. Quando muitos desses imigrantes chegaram, já encontraram uma sociedade mestiça. Um árabe, marroquino, argelino, libanês pode se passar tranqüilamente por um brasileiro. No Brasil, essas origens são diluídas em prol de uma outra coisa, de uma nova cultura, que é o resultado da mistura de várias culturas. Esses conflitos étnicos no Brasil não fazem sentido porque as pessoas não se mantêm em suas comunidades de forma muito fechada. A primeira geração talvez, para se proteger, porque não falavam a língua, não conheciam ninguém. Só os primeiros imigrantes buscaram a comunidade dos seus pais.
Na história da sua própria família, você chegou a vivenciar o fechamento de alguma geração anterior em relação ao Brasil?
Muito pouco. Meu pai, que imigrou do Líbano para o Brasil, era muçulmano e se casou com uma brasileira cristã. Ele rezou o Alcorão a vida toda, em casa, no seu quarto. E levava minha mãe à igreja todos os domingos. Durante 50 anos ele fez isso. Sempre vi meu pai levando minha mãe à igreja. Ele esperava no carro, e depois voltavam os dois para casa. Isso não sei se acontece em muitos países islâmicos, mas minha mãe conta que quando foi a Beirute e quis conhecer uma igreja importante, os parentes do meu pai, que são muçulmanos, a levaram para a igreja. Há um clichê, um estereótipo de que o islã é intolerante, radical. Isso é um discurso forjado. Você não pode colocar um bilhão de muçulmanos no mesmo balaio. São dezenas de países, que falam dezenas de línguas diferentes, dialetos. É uma cultura infindável de sociedades totalmente distintas.
Botar tudo numa mesma coisa, que é o islã, é realmente querer substituir os velhos fantasmas do comunismo e da Guerra Fria por um novo inimigo. É isso que faz Bernard Lewis, Samuel Huntigton e certos "orientalistas". O Brasil tem essa característica de diluir ou pelo menos de mitigar essas identidades fechadas. De diluir essas identidades muito rígidas e criar outras, que passam pela cultura brasileira, cujas origens são diversas, africanas, indígenas, etc. Na minha casa, minha mãe às vezes fazia comida amazonense misturada com comida árabe. Um tambaqui no forno com molho de taratur, que é um molho árabe à base de óleo de gergelim. Essa mistura é importante.
Os escritores árabes na Europa tematizam com freqüência o exílio, as dificuldades de lidar com o Outro e de ser o Outro para as sociedades ocidentais onde vivem. Isso jamais fez parte da sua história nem da sua literatura?
Não, jamais. Inclusive minha literatura é contra quaisquer fronteiras rígidas de identidades fechadas. Ao contrário, ela opera com o hibiridismo, com alguma coisa que é outra, que é diferente, que surge depois da imigração. No caso dos magrebinos de modo geral na França, é preciso lembrar que o Norte da África foi colonizado de uma forma brutal. A guerra de libertação da Argélia custou a vida de milhões de pessoas. E a França só reconheceu isso há muito pouco tempo. É muito cedo, a guerra acabou em 1962, acabou ontem. As feridas ainda não foram cicatrizadas. Certamente há uma parte pequena do islã que é radical, intolerante e rígida. Como há também o fundamentalismo judaico e o cristão. Em todas as religiões há esse tipo de intolerância. A mim nunca foi imposta nenhuma religião. Eu entendo que toda sociedade precisa de uma divindade, de uma transcendência, de uma espiritualidade, de um deus ou de muitos deuses. Mas acho que o escritor prescinde disso. Meus pais me disseram para escolher a religão que quisesse e eu optei pela literatura.
Falando no passado colonial dos países do Magreb, gostaria de saber se você acha possível traçar um paralelo entre a literatura latino-americana e de alguns países árabes. Existe uma espécie de herança pós-colonial que une a produção literária de várias regiões do planeta?
Os países da África e da América Latina são países em formação. A história ainda precisa ser desvendada, recontada, reinventada. Não a história oficial, mas a história que passa pelo imaginário. As guerras, os conflitos, o romance histórico, o desespero causado pela devastação do colonialismo, isso são coisas comuns aos países da África, da Ásia e da América Latina. Mas acho que é o que Goethe falava da Weltliteratur. Ele fundou esse termo: a literatura do mundo. Um livro de um escritor como o Salman Rushdie, um paquistanês de família muçulmana, que escreve em inglês. O Midnight’s Children (Filhos da Meia-Noite) é um livro sobre a divisão da Índia, a criação do Paquistão. Um momento do fim do colonialismo britânico e da inauguração de uma nova era, de uma nova sociedade. O Rushdie trabalha com essas tensões da história.
Outro grande romance é o do sudanês Tayeb Salih, recentemente traduzido para o português sob o título Tempo de Migrar para o Norte. É um escritor contemporâneo do Sudão, que escreve em árabe. Esse livro é uma espécie de viagem invertida do personagem do Conrad [Joseph Conrad 1857-1924] em Coração das Trevas. É um personagem que sai do Sudão, passa pelo Egito, se educa e vai para Londres, se tornando um intelectual brilhante. E lá enlouquece, volta para a sua aldeia, onde se suicida. São tensões geradas pelo colonialismo, mas o autor explora a subjetividade do personagem. Não é um romance de denúnica, não é um romance jornalístico nem político de um modo explícito. Acho que essas literaturas exploram o lado subjetivo, mas tenso, dessa dualidade de pertencer ao mesmo tempo a dois lugares. O drama do exilado.
Você fala em uma entrevista que a mulher árabe é aparentemente submissa, mas detentora dos segredos da família. Do que se pode concluir que ela é detentora de poder. Você acha que essa descrição se adequa ao mundo árabe em geral ou diz respeito apenas a esse seu certo Oriente amazonense?
Não posso dizer muito sobre isso, pois o mundo árabe é um mundo em si: o islã da Arábia Saudita não é o mesmo do Marrocos. Em alguns países, a situação da mulher é muito crítica. Acho todas essas restrições totalmente condenáveis, o uso obrigatório do véu, a negação do acesso a todas as conquistas que os países ocidentais já fizeram. Em algumas sociedades de maioria islâmica esses direitos são respeitados, como no Líbano, por exemplo. Eu não saberia dizer o que acontece em outros lugares. Mas quem está fora pensa que as mulheres são totalmente submissas e muitas vezes não é isso que acontece. Às vezes há outro tipo de relação, que se dá por certas normas de conduta social que são apenas diferentes.
Na minha família de descendentes de libaneses, as mulheres sempre foram muito fortes, atuantes e decisivas na minha formação. Pois foram elas que criaram os filhos. Agora, é preciso ressaltar que, no Ocidente, em milhares de famílias, em muitos países, as mulheres são espancadas, violentadas. No caso do Brasil, basta visitar uma delegacia de mulheres para encontrar todo tipo de violência. E isso é o que vem à tona, pois muitas vezes essas coisas não são ditas. A violência está em todo lugar. É de novo a criação de estereótipos, de formas de ver o islamismo como a criação do mal, do diabólico.
Dois Irmãos foi traduzido para o árabe, publicado em Beirute. Como foi a recepção do livro lá?
A recepção, pelo que eu sei, foi muito positiva. A tradução foi feita por uma professora de árabe da USP, que traduz nos dois sentidos, do português para o árabe e do árabe para o português, porque é bilíngüe: Safa Jubran. E já havia saído antes no Líbano um artigo sobre o Relato de um Certo Oriente, que um crítico libanês leu em francês e fez uma comparação com o livro do Jorge Amado, A Descoberta da América pelo Turcos, sobre os árabes que vieram na época do descobrimento.
Em relação à recepção dos seus livros na Alemanha : o "Relato de um Certo Oriente" foi editado no país em 1992. Nesses 12 anos que se passaram, como você foi percebendo o olhar alemão em relação à sua literatura? Pois o leitor se vê ao mesmo tempo confrontado com duas espécies de Outro: o primeiro é o viés oriental e o segundo o Outro tropical, equatorial, do Amazonas.
Acho que entenderam os dois livros. As resenhas dos jornais alemães mostraram uma compreensão da imigraçao e do que ela significa para o Brasil. E dessa presença da imigração na Amazônia. Afinal, os viajantes alemães foram importantes para a região. O grande exemplo é Alexander von Humboldt, com uma das obras mais importantes do Ocidente. O Humboldt está um pouco presente na literatura brasileira por causa do papagaio do Macunaíma. Aquele papagaio que fala no fim do livro, o único que conhece a língua da tribo. Isso o Mário de Andrade leu no Humboldt.
E existem autores árabes que influenciaram sua literatura?
Acho que minha literatura foi mais influenciada por Machado de Assis, por William Faulkner. Dos árabes, as Mil e Uma Noites. A estrutura do Relato lembra um pouco a das histórias que puxam histórias de As Mil e Uma Noites, que, enfim, é um livro lido e apreciado por todos os grandes escritores do Ocidente. De Edgar Allan Poe a Proust, de Stendhal a Balzac, chegando até ao próprio Faulkner. Todos os escritores leram as Mil e Uma Noites depois da tradução do Antoine Galland para o francês no século 18. E depois disso surgiram dezenas de traduções. Agora vai sair no Brasil uma edição histórica, traduzida diretamente do árabe para o português.
Acho que está havendo um interesse pela literatura árabe, tanto pela clássica quanto pela contemporânea. O romance é um gênero relativamente recente na cultura árabe. O que os árabes mais culturam é a poesia lírica, mas já há uma escola de romancistas importantes. Tem o Nagib Mahfuz, que ganhou o Prêmio Nobel, escritores do Magreb, do Líbano, do Egito, mas uma influência direta deles na minha obra eu não diria. Minha formação se deu com literatura brasileira, latino-americana, francesa, russa, muito mais do que com a literatura árabe.