"Custo de dar um golpe é gigantesco"
31 de março de 2021A demissão do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa desencadeou uma crise entre o presidente Jair Bolsonaro e o Alto Comando das Forças Armadas. De forma inédita, os três comandantes pediram renúncia conjunta nesta terça-feira (30/03).
Trata-se da maior crise na área militar desde 1977, quando o general-ditador Ernesto Geisel demitiu o então ministro do Exército, Sylvio Frota. Caberá ao novo ministro da Defesa, general Walter Souza Braga Netto, nomear os novos comandantes.
A magnitude do imbróglio entre o presidente e o Alto Comando tem levantado receios de articulações golpistas, sobretudo pelo rumor de que Azevedo teria negado endosso a uma medida de exceção de Bolsonaro. As incertezas se estendem à relação das Forças Armadas com o governo de agora em diante.
No entanto, na avaliação de Eduardo Costa Pinto, especialista na relação entre os militares e a política brasileira, a crise atual não representa uma ruptura. Com mais de 6 mil fardados em cargos civis e um protagonismo inédito no período democrático, o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) acredita que romper com o governo não está no horizonte dos líderes militares.
"Não tem como os militares, hoje, voltarem aos quartéis", afirma. "Criou-se um emaranhado que torna difícil o desembarque. Vão perder o status social? Em qualquer outro governo, haverá menos militares e benesses", diz o pesquisador em entrevista à DW.
Embora Hamilton Mourão ocupe a vice-presidência da República, Costa Pinto não vê risco de participação das Forças Armadas em qualquer iniciativa golpista neste momento. Entretanto, não descarta uma mudança de cenário no curto prazo, nem tampouco a possibilidade de uma "quartelada".
"O custo de dar um golpe é gigantesco", avalia. "Caso apoiem um movimento do Bolsonaro, vão dar o poder a ele e esperar que ele devolva? É muito complexo, num momento em que eles estão ganhando como nunca ganharam em 40 anos. É por isso, também, que não vão dar um contra-golpe no Bolsonaro".
DW Brasil: Os acontecimentos recentes marcam um afastamento das Forças Armadas do governo Bolsonaro?
Eduardo Costa Pinto: Não tem como os militares, hoje, voltarem aos quartéis. É importante entender que, no período republicano, foram poucos os momentos em que os militares não estiveram na política. A Proclamação da República é um golpe militar, assim como a chegada de Vargas ao poder em 1930. A saída dele em 1945 se deu por pressão militar. A eleição para sucedê-lo tinha dois candidatos militares. No segundo governo Vargas, eles pressionam por sua deposição, e só não houve golpe contra Juscelino Kubitschek pela ação do Marechal Lott. Até que vem o golpe de 1964.
O maior período em que eles ficaram fora do centro da política foi entre 1985 e 2016. Os militares poderiam ficar meio "cismados" com o Bolsonaro. Mas ele foi lá e encheu o governo de fardados, são mais de 6 mil exercendo funções civis. Eles voltaram a ter status social. Agora, conseguem se reunir com empresários, aparecer na Globo News. Quando o Mourão vai lá, parece que está em outro mundo. Dá para ver a cara dele de satisfação. Isso é importante na compreensão dessa geração que chega ao poder e á a mesma que foi derrotada junto com o Sylvio Frota, que não queria a distensão da ditadura.
A presença no governo e o status a que você se refere "prendem" os militares ao governo?
Criou-se um emaranhado que torna difícil o desembarque. Vão perder o status social? Em qualquer outro governo, haverá menos militares e benesses. Concretamente, estar no governo Bolsonaro significou para eles ter um termo específico na reforma da previdência e mais dinheiro para equipamentos no meio de uma crise fiscal enorme, além dos militares da reserva que abriram empresas e são representantes junto ao governo, funcionando como lobistas.
É por isso que ainda não vejo uma fratura, um racha. Primeiro, pela aproximação ideológica. Para eles, o Bolsonaro está errado, mas a imprensa exagera. A coisa do marxismo cultural é muito forte como doutrina. O patriotismo deles é completamente diferente do período do regime militar. Agora, é defender a Amazônia das ONGs.
Eles gostariam de obter isso de uma forma planejada, organizada, mas eles também não têm um projeto claro. Muita gente pergunta por que eles não colocam o Mourão. Primeiro, tem o desgaste do impeachment. Segundo, porque o Bolsonaro continua com 30% do eleitorado e é um candidato efetivo para que os militares continuem por lá por mais quatro anos, e acho que ainda será em 2022. Eles colocam isso na balança.
A demissão dos comandantes das Forças Armadas, que já articulavam uma saída conjunta, inspirou receios de um golpe militar. Como você avalia essa possibilidade?
Os militares não vão dar golpe, mas também não vão se movimentar para salvar o Bolsonaro. Esse é um processo em movimento, que não desarma de uma hora para outra, porque eles têm uma ideologia parecida com a do Bolsonaro. É evidente que há o risco de quarteladas, no sentido de um general específico comandar suas tropas. Inclusive, há potencial grande para isso, que nem necessariamente precisa vir de militares, pode ser de PMs. Agora, ter coordenação disso é outra história.
Mas não vejo, hoje, uma capacidade orgânica das Forças Armadas de realizar o que fizeram em 1964. O custo de dar um golpe é gigantesco, seja o externo, porque já não há mais um governo alinhado com os Estados Unidos, ou interno, que é a gestão disso, porque eles inclusive estão no poder. E se eles perdem? Caso apoiem um movimento do Bolsonaro, vão dar o poder a ele e esperar que ele devolva? É muito complexo, num momento em que eles estão ganhando como nunca ganharam em 40 anos. É por isso, também, que não vão dar um contra-golpe no Bolsonaro.
Em sua leitura, há arrependimento por parte dos militares de ter encampado o governo Bolsonaro?
Os generais hoje situam a fundação do Exército na Guerra de Guararapes, uma batalha colonial. Isso é um surto, porque eles pensam na fundação do Exército antes da fundação da nação. No Brasil, os militares sempre seguiram a lógica de exercer um papel de tutela, de quarto poder. Ou seja, eles são os escolhidos, capazes de governar e endireitar o país para o caminho correto. Isso está no DNA do tenentismo da Primeira República, do golpe de 1964 e de hoje.
Na cabeça deles, o projeto claramente foi: nós vamos com Bolsonaro, eliminamos a corrupção, teremos bons gestores e resolvemos o problema do país. Eles acreditavam nisso, como boa parte da população acreditou.
Estruturalmente, os militares já pensam assim em sua formação, e tiveram a conjuntura a seu favor. Em 1964, o alvo do discurso também era a corrupção, assim como no tenentismo. Não estou dizendo que não houvesse corrupção nesses momentos históricos, apenas avaliando o argumento. Eles encheram os ministérios de militares, achando que gerir uma máquina administrativa fosse uma coisa fácil. Quando eles vão para o Ministério da Saúde, a sociedade percebeu que eles não são bons gestores. Foi por essa razão que o alerta ligou. O pesquisador Manoel Domingos fala de um trilema que envolve os militares brasileiros: não sabem se são oficias de defesa, políticos ou polícia. Ou seja, não conseguem fazer nenhuma dessas coisas bem.
Uma parte deles ainda quer estar dentro do governo para ter tempo de fazer o projeto que eles desejam de transformação da sociedade. Para eles, isso significa gestão, fim da corrupção e moralidade nos costumes. O problema é que este não é um projeto integrador de geração de empregos, de renda ou coisa do gênero. É nesse sentido que eu falo que o Bolsonaro é a infecção oportunista que se apropriou de um corpo doente, o Brasil, e não a causa explícita. Mas ele aumenta a doença, uma das maiores crises institucionais de nossa história. E está chegando a um grau que vai ficando disfuncional. Mas não significa dizer que se encontre uma saída imediata para essa disfuncionalidade.
O que representa a escolha do general Braga Netto para assumir o Ministério da Defesa?
Ele tem uma importância central. Foi o interventor do Exército no Rio de Janeiro durante o governo Temer, um processo iniciado um mês antes da morte de Marielle Franco. Ele atuou e tinha informação de tudo o que estava acontecendo aqui, inclusive da questão das milícias e do envolvimentos de outros grupos que aconteciam no Rio, estado do presidente da República, onde surgiram as acusações de "rachadinha".
Na carta de despedida do general Villas-Bôas, o grande articulador do projeto Bolsonaro, ele cita três brasileiros que teriam sido fundamentais para retomar o "curso normal" do "Rio da História": Bolsonaro, Sérgio Moro e o Braga Netto. Esse documento vai ser uma chave de compreensão para os historiadores do futuro. O Villas-Bôas nunca entregou tanto o jogo.
A escolha dos novos comandantes das Forças Armadas, que cabe ao Braga Netto, será decisiva?
A diferença dos militares da ativa para o Bolsonaro é muito mais de forma do que conteúdo. Se o Bolsonaro pudesse fechar o Congresso, faria. Basta olhar os posicionamentos dele ao longo da vida. Alinhamento ideológico com o Bolsonaro quase todos eles têm, mas não num processo de fechamento. Não acho que os comandantes indicados pelo Braga Netto apoiariam um processo golpista. Ele próprio não é alinhado a essa ideia. Trata-se do cara do Villas-Bôas, que não queria o fechamento. O mesmo não pode ser dito sobre o Mourão, que externou esse desejo.
Portanto, neste momento, não temos um grande risco de intervenção organizada das Forças Armadas junto com Bolsonaro num fechamento. Daqui a uma semana, já não sei. Hoje, está claro que vai aumentar a tensão do Bolsonaro com os militares e também entre ele e o pessoal do dinheiro. A pandemia é um elemento fundamental para entender isso, porque acelerou os processos.
Bolsonaro pode reagir a isso via economia, decretando estado de emergência e voltando com o auxílio emergencial. Ainda vai ser muito embolado, e os militares podem encampar essa ideia. Eles estavam há algum tempo querendo tirar o Paulo Guedes, mas não têm uma coesão. A imprensa fala que os militares são desenvolvimentistas, só que os militares de hoje não tem nada a ver com o pessoal do passado. É outro mundo.