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Da China até Bremen é um longo caminho: que horas são?

Simone de Mello12 de maio de 2006

H.C. Artmann homenageia artesãos e seus ofícios numa prosa poética de rara espirituosidade. E repleta de personagens absurdas.

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'O que seria de nós sem o delicioso sal, o que seria da nossa comida?'Foto: Jung und Jung

"Entre um limpador de chaminés limpo e um barão mal lavado – quem não preferiria beijar o limpador de chaminés?", pergunta H. C. Artmann (1921–2000) no início de uma das historietas de Fleiss und Industrie (Diligência e Indústria), um livro escrito em circunstâncias curiosas, em 1967, e republicado agora pela editora vienense Jung und Jung.

Em 30 pequenas ficções sobre os mais diversos ofícios e profissões, o escritor de vanguarda austríaco presta uma homenagem ao trabalho artesanal e ao homem comum (e também bastante incomum) – algo que soa necessariamente nostálgico em meio às novas culturas de trabalho da era digital.

Trabalhando com Monsieur Hulot

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Um artesão de Hamburgo, em trajes típicos da profissãoFoto: dpa

São padeiros, ourives, sapateiros, marceneiros, mineradores e açougueiros que protagonizam breves histórias fragmentárias sobre um cotidiano simples pontuado de ocorrências absurdas. Fleiss und Industrie é uma apologia à tradição medieval européia (até hoje ainda viva na Áustria) dos ofícios praticados por aprendizes e mestres, enviados em viagens de aprendizado e errância (como Wilhelm Meister, de Goethe).

Mas também são insólitos fabricantes de carta de tarô, porta-estandartes, salva-vidas, construtores de arcas e carteiros-aviadores. A narrativa poética esboça em poucos traços personagens que muitas vezes parecem dialogar, da janela de suas oficinas, com Monsieur Hulot ou Humpty Dumpty.

"Uma apologia ao sedentarismo", aponta o poeta Raoul Schrott em seu posfácio ao livro. As personagens de Artmann são habitantes de um mundo estático em que prometem permanecer para sempre; daí, quem sabe, sua imensa curiosidade pelo mundo e pelo exótico.

Viagem à volta da oficina

O carteiro senta sobre duas cartas tropicais e assim tenta aquecê-las: "Ah, este inverno!" Holub, o arqueiro, "nunca viu a ilha de Nantucket, mas uma de suas arcas tem este nome, ela só tem cinco anos e foi pintada de azul-claro, um homem podre de rico a comprou, um heleno".

E o papeleiro está imerso num mundo de distâncias possivelmente encurtáveis pela escrita: "Quantas cartas foram escritas em vão, enviadas a países estrangeiros, sentidas por tantas mãos? Como uma camélia que acaba de desabrochar, branca era a carta que caiu pelo vão da sua porta naquele dia, em 1935, ele a leu só à noite e então já era tarde demais".

Os exóticos mestres de Artmann são solitários, mas nunca aparecem sem uma mulher. Até o padre tem companhia no fim do inverno: "Jonas e Priscilla se acariciam, passam a mão nos cabelos do outro – quando março chegar... Isso mesmo, eles querem se agüentar até lá, caso isso tudo não venha a durar mais".

Linguagem dirige

Absurdas também foram as circunstâncias em que Artmann foi "coagido" a escrever este livro. Seu assistente editorial o recebeu em casa, em Frankfurt, e o obrigou a escrever uma história de manhã e outra à tarde, de modo que o livro ficou pronto em três semanas. E não foi difícil convencer o editor da Suhrkamp a publicar o livro na época.

H.C. Artmann
H. C. Artmann em 1995Foto: picture-alliance / dpa

Hans Carl Artmann, o poeta experimental que fundou – junto com Gerhard Rühm, Konrad Bayer, Friedrich Achleitner e Oswald Wiener – o Grupo de Viena em 1952, para abandoná-lo seis anos depois, dedicou este livro raro a seu pai, mestre sapateiro.

No posfácio, Raoul Schrott destaca a capacidade do demiurgo Artmann, que "não trabalha com a linguagem, mas dentro dela, de dentro dela: cria 'paisagens imaginárias geradas pelas próprias palavras ou reconfiguradas através delas' – porque este tipo de poeta não impõe nenhuma cenografia ao texto, mas deixa a linguagem assumir a direção."