Depois do aborto, o temor de ofensiva contra outros direitos
5 de maio de 2022Depois do aborto, o casamento gay? Ou o acesso a contraceptivos?
Após o um rascunho vazado indicar que a maioria dos membros da Suprema Corte dos Estados Unidos está disposta a revogar uma proteção jurídica ao aborto, consagrada em uma decisão judicial de 1973 conhecida como Roe vs. Wade, ativistas levantam o temor de que o Tribunal possa encampar outros alvos de grupos conservadores, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e até mesmo o acesso a métodos contraceptivos.
Após o vazamento, que foi revelado pelo site Politico na segunda-feira (02/05), o presidente democrata Joe Biden, um defensor do acesso ao aborto, alertou que "todas as decisões sobre a vida privada" dos americanos e "uma série de outros direitos" estão em jogo agora.
Um tribunal dominado por conservadores
O rascunho de 98 páginas do Supremo, escrito pelo juiz conservador Samuel Alito, chama o caso Roe vs. Wade de "totalmente sem mérito desde o princípio".
"Acreditamos que Roe vs. Wade deve ser anulado", afirma Alito no documento, intitulado "Parecer da Corte". "A conclusão inevitável é que o direito ao aborto não está profundamente enraizado na história e nas tradições da nação", declarou o juiz.
Se a conclusão for mesmo acatada pela Suprema Corte, os EUA voltarão à situação de antes de 1973, quando cada estado era livre para proibir ou autorizar a realização de abortos. Dada a grande divisão sobre a questão, espera-se que metade dos estados, especialmente no sul e no centro-oeste conservadores, proíbam rapidamente o procedimento.
A configuração da Suprema Corte americana foi profundamente alterada pelo ex-presidente Donald Trump, que durante seu mandato nomeou três juízes conservadores, solidificando a maioria conservadora do tribunal de nove membros. A Corte conta hoje com seis ministros conservadores e três liberais.
Próximos alvos?
A 14ª emenda à Constituição, ratificada em 1868, não faz referência a direitos fundamentais particulares. Porém, proíbe o Estado de "privar uma pessoa de sua vida, de sua liberdade ou de seus bens sem um processo legal regular".
A jurisprudência dos tribunais americanos se baseia há anos nessas disposições para garantir os direitos e liberdades individuais, como o acesso à contracepção, ao aborto e o casamento gay.
Mas o trecho do juiz Alito sobre o direito ao aborto não estar "profundamente enraizado na história e nas tradições da nação" provocou especial temor entre ativistas sobre um efeito cascata. O aborto estava justamente entre uma série de direitos fundamentais que o tribunal ao longo de muitas décadas reconheceu, pelo menos em parte, como as chamadas liberdades processuais "substantivas".
Essas liberdades, apontadas no passado pela Suprema Corte, incluem o acesso a contraceptivos em 1965, o casamento interracial em 1967 e o casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2015.
Ativistas e especialistas temem agora que o mesmo princípio da nova análise do caso Roe vs. Wade seja aplicada a esses outros direitos pela maioria de juízes conservadores, que também podem não considerá-los "profundamente enraizados" na história do país.
Alertas
Com esse raciocínio jurídico, a Suprema Corte poderia "revogar direitos constitucionais que gerações de americanos consideram adquiridos", aponta a professora de direito Katherine Franke, da Universidade de Columbia.
"Não só o aborto, mas também a contracepção, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a criminalização da sexualidade fora do casamento ou entre pessoas do mesmo sexo", explica.
Seu colega da Faculdade de Direito de Nova York Arthur Leonard acredita que "está aí a tentação (...) de levar esses assuntos à Suprema Corte".
"Existe gente de direita nos Estados Unidos – muitos por razões religiosas, outros por razões morais – que é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo", disse ele.
O presidente Biden disse temer que os juízes conservadores do tribunal de hoje possam rever, por exemplo, a decisão do tribunal no caso Griswold vs. Connecticut, que estabeleceu que existe um direito à privacidade que impede os estados de interferirem no direito dos casais de comprar e usar anticoncepcionais.
Sharon McGowan, diretora da organização de direitos civis Lambda Legal, afirmou que a decisão sobre o aborto deve funcionar como o lançamento de um "sinalizador" para ativistas conservadores, que devem ser atraídos para lançar desafios contra outros precedentes. "Derrubar Roe vs. Wade será mais perigoso por causa do sinal que enviará a tribunais inferiores para desconsiderar todos os outros precedentes que existem", disse ela.
"Está começando com o aborto. Não vai acabar com o aborto", disse Mini Timmaraju, presidente da organização de defesa do direito ao aborto Naral Pro-Choice. "Então, todos precisam estar muito vigilantes."
"Isso abre a porta para todo tipo de coisa, agora que temos um tribunal que parece disposto a apoiar esse tipo de criatividade", disse Alison Gash, professora da Universidade do Oregon. "É tudo especulação, mas parece perfeitamente plausível que vamos ver uma experimentação republicana contra várias políticas que podem vir a ser afetadas por isso."
Alcance
O juiz Alito, em seu rascunho, afirmou explicitamente que o tribunal tem apenas a garantia do direito ao aborto na mira, e não essas outras questões. "Enfatizamos que nossa decisão diz respeito ao direito constitucional ao aborto e nenhum outro direito", escreveu o juiz. "Nada nesta opinião deve ser entendido como lançamento de dúvidas sobre precedentes que não dizem respeito ao aborto."
Especialistas apontam que desfazer o precedente que garantiu o casamento gay deve ser mais difícil do que o aborto, isso porque centenas de milhares de casais do mesmo sexo confiaram na decisão de 2015 para se casar e criar vínculos legais, como propriedade compartilhada e direitos de herança, aponta Teresa Collett, professora da Faculdade de Direito da Universidade de St. Thomas.
Segundo ela, os tribunais geralmente relutam em desfazer esse tipo de precedente, em contraste com o aborto, que geralmente é "uma resposta a circunstâncias", avalia Collett.
Mas isso não foi suficiente para dissipar temores. Em Nova York, a metrópole que é um bastião histórico de movimentos de apoio a minorias e pessoas LGBTQ, milhares foram às ruas na noite de terça-feira para manifestar indignação contra a potencial decisão da Suprema Corte sobre o aborto.
Os manifestantes, muitos dos quais afirmaram que não se sentem representados pelos magistrados da Suprema Corte nem pela classe política, advertiram que as investidas conservadoras não vão parar no aborto.
"O que vem a seguir? O que vem a seguir? O que vem a seguir?", gritava a procuradora-geral do estado de Nova York, Letitia James, democrata, feminista e afro-americana. Para ela, os direitos constitucionais fundamentais dos Estados Unidos permitem que qualquer pessoa "se case com quem quiser" e conferem direitos aos "membros da comunidade LGBTQ".
Liza, de 73 anos, que não quis dar seu sobrenome na manifestação de terça-feira em Nova York, afirmou que "nunca imaginou um retrocesso" em termos da vida privada depois de meio século em seu país.
jps (AFP, AP)