Derna, cidade da Líbia marcada por rebeldia e negligência
19 de setembro de 2023Através de sua história, a cidade costeira de Derna, na Líbia, foi tanto venerada quanto temida. Fundada no fim do século 15, onde havia uma antiga colônia grega, era um conhecido centro de intelectualidade, pensamento independente, cosmopolitismo, arte e cultura.
Com 100 mil habitantes, também era conhecida por sua localização atraente na costa do Mediterrâneo, ladeada por algumas das poucas florestas existentes no país árido.
Após as recentes enchentes catastróficas, especialistas afirmam que a reputação histórica da cidade portuária e sua localização privilegiada foram fatores que contribuíram decisivamente para um número ainda maior de mortes causadas pela tempestade Daniel. Até o momento, são mais de 11 mil vítimas, além de milhares de desaparecidos.
Cidade rebelde
Em 2011, durante a assim chamada Primavera Árabe, a população de Derna e a da cidade costeira de Benghazi, 350 quilômetros a oeste, estiveram entre as primeiras a protestar contra a ditadura no país, que já durava 42 anos.
Durante décadas, o governo do líder autoritário Muammar Kadafi estabeleceu uma base leal de poder no oeste e ao redor da capital, Trípoli. Ele não dava muita atenção para o leste, submetendo por muito tempo cidades como Derna e Benghazi aos efeitos de suas políticas de exclusão econômica.
Isso ocorria, em parte, por a população de Derna expressar sua oposição a Kadafi desde o início de seu regime, nos anos 1970. Sua reputação revolucionária foi moldada por cidadãos que defendiam versões mais rígidas do Islamismo, unidos pelos valores religiosos, que acabariam lutando contra Kadafi. Em represália, o ditador brutalizou Derna e deixou sua infraestrutura em ruínas.
Nos anos 1990, os homens de Derna se juntaram à milícia Grupo Líbio Islâmico de Combate (LIFG, na sigla em inglês), o que levou Kadafi a impor uma repressão brutal à cidade, enviando soldados que iam de porta a porta à caça de combatentes do LIFG.
O ditador também impôs punições à cidade como a demolição de casas e o corte do abastecimento de água. Em 1996, muitas das vítimas do massacre ocorrido numa prisão de Trípoli eram de Derna. "A cidade erodiu-se progressivamente. Sem escolas, com os hospitais em péssimas condições e a infraestrutura negligenciada", relata o presidente do Conselho Nacional de Relações EUA-Líbia, Hani Shennib.
Um repórter do jornal britânico The Guardian que esteve na cidade em 2011 observou que "os apartamentos e blocos de escritórios de Derna são decaídos em comparação com o resto do país; o esgoto vaza pelas ruas principais".
Essa negligência continuou durante anos. Falando a jornalistas, Hussein bin Dish, um funcionário da administração local, esbravejava que "nada funciona por aqui, não há nenhuma autoridade nacional, nada": "Olhem ao redor e façam algo a respeito. Vivemos uma enorme injustiça."
Antro de extremistas islâmicos?
Durante as revoltas de 2011, Kadafi costumava repetir alegações de que os protestos em Derna eram insuflados por extremistas islamistas e grupos como a Al Qaeda.
Especialistas, porém, avaliam que a atitude oposicionista da cidade advém somente em parte do fato ser um centro de dissidentes islamistas mais conservadores. A rebeldia também vem de uma longa tradição de intelectualidade e contracultura.
Após o fim do regime de Kadafi. em 2011, Derna, assim como o restante da Líbia, ficou à mercê de vários grupos de guerilheiros e milícias, Um dos mais poderosos na cidade era a brigada de mártires Abu Salim, fundada por um ex-membro do LIFG. Em 2014, dissidentes dessa milícia juraram fidelidade ao grupo "Estado Islâmico" (EI) e tomaram o controle da cidade.
O domínio dos jihadistas "foi amplamente marcado por decapitações e outras formas de execução ou atos de humilhação pública", escreveu Andrew McGregor, um especialista canadense em temas de segurança no mundo islâmico, num relatório de 2018 do think tank americano Jamestown Foundation.
Outros grupos na cidade combatiam os islamistas, mas só em 2016 a cidade se viu completamente livre do EI. Entretanto, infelizmente para a população civil de Derna, esse não foi o fim dos combates.
País dividido
A Líbia se dividiu em duas a partir de 2014, com governos rivais localizados no leste e no oeste, após o fim violento do regime Kadafi. O assim chamado Governo de Unidade Nacional, apoiado pela ONU, é sediado em Trípoli, no oeste. Seu rival no leste, conhecido como Casa dos Representantes, tem base em Tobruk.
O líder paramilitar Khalifa Haftar, cujo Exército Nacional Líbio (LNA) controla a maior parte da metade leste da nação, também queria o domínio sobre Derna. Suas forças impuseram um cerco à cidade em 2015, mas só conseguiram tomá-la três anos depois.
Os combates em Derna foram brutais. A comunidade internacional, porém, ignorou o ocorrido uma vez que "não tinha objeções à eliminação desse centro islamista de longa data", diz McGregor. Mesmo após o fim da violência em 2018, Derna continuaria a ser ignorada e negligenciada pelos que estavam no poder no leste da Líbia, devido a sua fama de reduto rebelde.
"Os líbios estão chocados e culpam os governos corruptos que disputam o poder ao invés de governarem, além de desviarem recursos que deveriam ser investidos na reconstrução de Derna após a guerra de 2018, ignorando os alertas sobre a situação das represas", escreveu Tarek Megerisi, diretor de políticas do programa para o Oriente Médio e Norte da África do Conselho Europeu de Relações Exteriores.
No início de setembro, as eleições municipais em Derna foram canceladas, o que possibilitou a permanência do LNA no poder, como observou Anas El Gomati, diretor do think tank líbio Instituto Sadeq.
"As eleições locais que deveriam ter ocorrido há semanas em Derna foram canceladas em favor dos militares [que ainda permanecerão] no poder por mais cinco anos."
"Mas, o que fizeram eles nos últimos cinco anos, além de pilhar a economia, destruir a cidade e vender a sucata por 1 bilhão de dólares?", perguntou, referindo-se a um relatório de 2019 da Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, que investigou as fontes de financiamento do LNA.
Paisagem contribuiu para catástrofe
A localização da cidade também foi um fator na devastação gerada pelas enchentes. Permeada por igrejas e mesquitas antigas, famosa por sua agricultura e delimitada por praias, Derna é construída sobre o que se chama de leque aluvial – onde a terra se forma no sopé de montanhas por sedimentos de rios e córregos que deságuam no mar. A cidade é dividia em dois por um rio que permanece seco durante a maior parte do ano.
Esse tipo de geografia é propenso a enchentes, como as que Derna enfrentou várias vezes nas últimas décadas. Em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, um dilúvio varreu tanques e soldados alemães estacionados nos arredores da cidade. Outras grandes enchentes ocorreram nos anos de 1956, 1959, 1968 e 1986. A de 1959 era a mais grave, até ser superada em 2023.
As enchentes regulares são justamente o motivo de Derna possuir duas represas, Mansour e Derna, construídas em 1973 e 1977 pela empresa Hidrotehnika-Hidroenergetika, da ex-Iugoslávia. Elas funcionavam como um tipo de controle de enchentes e da erosão do solo, e providenciavam irrigação para as plantações, segundo a empresa.
Até há pouco, a última enchente em Derna fora em 2011, após as autoridades locais tentarem, sem sucesso, drenar a água das represas. Mas, mesmo antes disso, já estava claro para a população que as barragens não tiveram manutenção adequada durante anos.
Não se sabe ao certo quando foi a última vez em que elas foram supervisionadas. Pode ter sido em 2022, ou mesmo em 1983, a julgar por depoimentos de moradores locais a jornalistas. "Durante semanas, na verdade, anos, alertamos as autoridades que as represas tinham rachaduras e precisavam de manutenção. Falamos, e ninguém nos ouviu. Agora, Derna está inundada", comenta um morador.
A cidade cresceu de forma não planejada e aleatória, edifícios foram construídos ou ampliados em áreas onde antes ocorriam enchentes regulares. Ainda assim, as represas davam aos habitantes uma falsa sensação de segurança.
Mas, quando a dura realidade das enchentes se impôs nos últimos dias, não era simplesmente uma questão de falta de manutenção. Especialistas em hidrologia avaliaram que as represas não foram projetadas para suportar grandes volumes pluviais, tendo sido construídas antes de os efeitos das mudanças climáticas virarem realidade.