Desenrolando a confusão da Babilônia
26 de janeiro de 2003Para a sofrida categoria dos tradutores, o Europäisches Übersetzer Kollegium (EÜK) é o paraíso na Terra. Situado numa antiga cidadezinha perto da fronteira com a Holanda e instalado em cinco casas de enxaimel, ele não é atraente apenas por sua biblioteca especializada de 110 mil volumes - a maior do mundo - contendo livros em mais de 275 idiomas e dialetos. O EÜK também tem 29 apartamentos com computador e acesso à rede. O mais interessante é que toda essa infra-estrutura é colocada gratuitamente à disposição de tradutores profissionais.
A única condição é que já tenham sido publicadas pelo menos duas obras traduzidas por eles e que estejam começando algum projeto novo para uma editora. Em Straelen parte-se do pressuposto de que o tradutor fale alemão, afinal uma das coisas mais interessantes no Kollegium é o convívio e o intercâmbio com os colegas, numa profissão tão solitária. O centro realiza ainda seminários de tradução, em colaboração com diversas instituições. Voltados para temáticas ou grupos específicos, eles atraem tradutores de todo o mundo.
Tradutores alemães e brasileiros
A alemã Ray Güde-Mertin, agente literária e professora de Literatura Brasileira na Universidade de Frankfurt, deu vários seminários de tradução em Straelen, pois também traduziu autores brasileiros para o alemão. Ray, porém, escolhe para traduzir pessoalmente apenas um ou outro livro que aprecia. Segundo a grande divulgadora da literatura brasileira na Alemanha, um tradutor literário alemão de gabarito ganha de 17 a 20 euros por lauda, mas a maioria dos profissionais tem que se contentar com bem menos. Fato é que o honorário dificilmente é proporcional às exigências de alta qualificação do ofício, em qualquer parte do mundo.
A importância por ela citada, contudo, está muito distante dos 24 reais que os tradutores literários obtêm por lauda no Brasil, segundo a tabela do sindicato, mas que raramente é cumprida. O preço pago por muitas editoras não passa de 17 ou 18 reais, em torno de cinco euros. Kristina Michahelles, por exemplo, que já traduziu para o português vários livros do alemão, entre eles dois de Stephan Zweig e uma biografia de Hitler, de Lothar Machtan, exerce o jornalismo como profissão e a tradução como segunda atividade. E, como ela, faz a maioria dos tradutores literários no Brasil.
Dicas para escapar das cascas de bananas
O centro de Straelen é possivelmente o maior "banco de dados" humano, no que se refere à arte da tradução, pois muitas vezes seus hóspedes discutem até de madrugada sobre as sutilezas do ofício e as armadilhas das expressões idiomáticas ou dos vários sentidos de um termo, pois o maior temor de um tradutor é "escorregar" numa delas. O lugar ideal para isso é a grande copa-cozinha, onde o intercâmbio é dos mais profícuos, os alemães ajudam os estrangeiros com textos de Goethe, Robert Musil ou Günter Grass e recebem conselhos valiosos de colegas russos quando estão traduzindo Dostoiévski ou Tolstoi.
"Traduzir é como ter que transferir uma bela casa de um país para o outro. Mas você sabe que nesse país não existe o tipo de tijolo da original, as telhas também são completamente diferentes, a arquitetura e a tradição também não conferem e até a paisagem onde ela vai ser colocada é muito distinta. É esse tipo de problema que o tradutor tem que resolver", diz o moscovita Mikhail Rudnitzki.
A contribuição dos tradutores segundo Saramago
Até o ano passado, o russo fazia as honras da casa, em Straelen, como translator in residence, além de percorrer a Alemanha fazendo palestras sobre a difícil arte da tradução, tentando angariar simpatias para esse trabalho pouco valorizado e, geralmente, muito mal pago em qualquer parte do mundo. Os leitores só notam o trabalho do tradutor quando o resultado saiu ruim. O que é uma grande injustiça, segundo Rudnitzki, saindo em defesa da categoria. "O trabalho do tradutor só se distingue daquele do autor em um ponto: o tradutor não pode criar por conta própria. Mas o resto, às vezes ele faz até melhor que o escritor."
O maior reconhecimento já feito ao trabalho dos tradutores, contudo, partiu do escritor português e Nobel de literatura José Saramago: "Os autores escrevem as suas respectivas literaturas nacionais, mas a literatura mundial é obra dos tradutores".
Em Straelen já estiveram morando e trabalhando tradutores de inúmeros países, desde a Albânia até o Zaire. O professor Modesto Carone, que se dedica há 30 anos à tradução dos livros de Kafka, é um dos poucos tradutores brasileiros que já esteve em Straelen, gozando da hospitalidade do EÜK e do convívio com os colegas. Cerca de 15.500 traduções foram feitas total ou parcialmente nos 25 anos de funcionamento do centro, entre elas O tambor, de Günter Grass, traduzido para o russo por Sonja Friedland, Fausto, de Goethe, traduzido para o vietnamita por Ngo Quang Phuc. Fuad Rifka, de Beirute, trabalhou numa nova tradução da Bíblia para o árabe. Sverre Dahl traduziu o poeta Hölderlin para o norueguês e Denis Messier passou para o francês O chiste e sua relação com o inconsciente, de Freud.
Beckett, Max Frisch e Böll: os patronos
Quem colocou a pedra fundamental para o EÜK foi um filho da cidade de Straelen: Elmar Tophoven, o tradutor alemão de Samuel Beckett. O modelo que ele tinha em mente era a Escola de Toledo, na Espanha do século 12, na qual bibliotecas inteiras de literatura árabe foram traduzidas para o castelhano e o latim, tornando as obras acessíveis ao mundo ocidental. Beckett foi um dos patronos do Kollegium, juntamente com Max Frisch e Heinrich Böll.
O Centro Europeu de Tradutores é financiado principalmente pelo Estado da Renânia do Norte Vestfália, mas também recebe subsídios da União Européia, de outros estados alemães e uma série de fundações privadas.
O búlgaro Liubomir Iliev, que substituiu Rudnitzki a partir de janeiro deste ano, diz que o valor do EÜK não se mede por contribuições em dinheiro: "O Kollegium é o contrário da confusão de línguas da Babilônia", diz o tradutor de Goethe. A vivência que o centro proporciona a tradutores de diferentes idiomas é a chave para a melhor compreensão entre elas.