Ditadura da Argentina: impunidade mais de 40 anos depois
29 de julho de 2020Anahí Marocchi nunca esquecerá o 18 de setembro de 1976: ela e a mãe estavam em Tandil, situada 350 quilômetros a sudoeste de Buenos Aires, quando descobriu que seu amado irmão Omar, dois anos mais novo, desaparecera. Anahí ainda se lembra de como ambas desabaram em prantos no banheiro. Desde então, não há vestígios de Omar Marocchi, então com 19 anos, nem de sua namorada Susana Valor, então grávida de três meses.
Hoje, 44 anos depois, ela ainda luta por um esclarecimento e punição: "Não se trata apenas de Omar, de uma pessoa. Defendo todas as vítimas da ditadura militar argentina e todos os que lutam por justiça."
O homem que se acredita estar por trás do assassinato de Omar Marocchi foi descoberto em Berlim, onde vive impune há sete anos. Trata-se de Luis Esteban Kyburg, vice-comandante de uma unidade naval de elite comprovadamente envolvida em crimes internacionais.
Oposicionistas como Marocchi eram levados ao centro de detenção secreta em Mar del Plata, onde eram abusados sexualmente, torturados e mortos. Kyburg, de 72 anos, enfrenta há anos um mandado de prisão internacional, acusado de envolvimento no sequestro e assassinato de 152 pessoas. Enquanto outros militares já foram condenados por esses crimes na Argentina, ele está à solta em plena capital alemã.
Kyburg fugiu para Berlim em 2013, quando deveria testemunhar num processo na Argentina. Dois anos depois esta solicitou sua extradição, mas Kyburg está protegido por um passaporte alemão. O Ministério Público de Berlim assumiu o caso e coopera com os promotores em Mar del Plata e Buenos Aires.
"A nacionalidade de Kyburg não deve protegê-lo do cumprimento da lei. O caso de Omar Marocchi é apenas um entre muitos milhares que foram torturados, mortos, abusados e sequestrados na Argentina", disse em Berlim o advogado Wolfgang Kaleck, fundador e diretor geral do Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR). "A Alemanha deve cumprir suas responsabilidades e levá-lo a tribunal aqui."
Uma luta longa continua
Calcula-se que o regime ditatorial do general Jorge Rafael Videla fez "desaparecerem" cerca de 30 mil membros da oposição. As forças de segurança sequestravam os levavam a centros de tortura secretos e os assassinavam. Muitas vítimas eram jogadas no Atlântico nos assim chamados "voos da morte", ou sedadas ou já mortas. Entre elas, estiveram cerca de 100 alemães e alemãs, incluindo Elisabeth Käsemann, filha do conceituado teólogo de Tübingen Ernst Käsemann.
Logo após o desaparecimento de seu irmão, Anahí Marocchi ingressou em organizações de direitos humanos, e há décadas está em contato com as mães e avós da Plaza de Mayo. "Essa não é uma luta breve. A procura dos responsáveis me ocupa há décadas", afirma.
Nas últimas semanas, Marocchi recebeu grande apoio através de mensagens por WhatsApp, SMS e e-mail. Muitos antigos amigos de escola do irmão pediram que ela perseverasse e prosseguisse. "Isso me fez incrivelmente bem", conta. A mídia argentina também tem dado destaque ao caso.
Ela parte do princípio que Kyburg era uma figura importante numa rede perfeitamente organizada: "Sempre estivemos convencidos de que devia haver uma gigantesca organização para esse plano sistemático da Junta. E sempre faltavam responsáveis. É provável que ele saiba muito sobre o meu irmão." É claro que os acusados sempre vão se recusar a divulgar informações e insistir em sua inocência, mas ela ainda espera descobrir mais: "Eu procuro respostas. Quero saber como o meu irmão morreu."
Contudo, Kyburg ainda pode conseguir se safar, pois o Ministério Público de Berlim tem que provar que ele assassinou Omar Marocchi. Para isso, precisa de declarações de testemunhas, especialistas e peritos da Argentina. O caso Kyburg pode durar anos.
Apesar disso, Anahí Marocchi não vai desistir. Na Argentina foram necessárias décadas para levar os oficiais militares responsáveis à Justiça. "A Alemanha não deve ser um refúgio para um homem que cometeu crimes contra a humanidade. Kyburg deve enfrentar a punição que merece, também como um sinal para o futuro, pois, caso contrário, esses crimes vão se repetir."
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