Divórcio no Brasil: da impossibilidade à rapidez e festa
30 de setembro de 2023Em cartaz nos cinemas brasileiros, o filme Ângela trouxe um lembrete à tona: até bem pouco tempo atrás, era extremamente difícil para uma mulher separar-se de seu marido. Essa foi uma das violências sofridas pela protagonista da história, a socialite Ângela Diniz: seu assassinato pelo então companheiro em 1976, aos 32 anos, desencadeou uma série de protestos feministas.
Aprovada no ano seguinte, a Lei do Divórcio nasceu nessa esteira. Finalmente estava feito o arcabouço legal para conferir direitos a casais que optassem pela dissolução do casamento no Brasil. Antes, na história da República, havia a previsão da "separação de corpos", desde 1890 – apenas para causas consideradas aceitáveis, como adultério ou injúria grave –, e o desquite, desde 1916 – também com justificativas e mantendo o vínculo matrimonial.
Para especialistas, a instituição do divórcio pode ser vista como uma conquista feminina. "É uma pauta feminista porque tira aquela mulher da dependência do homem, dá autonomia para que reconstrua sua vida, já que as legislações todas subjugavam a mulher ao homem depois de casada, criando uma dependência para essencialmente tudo. O divórcio emancipa a mulher, que volta a ter domínio sobre o corpo e as decisões", analisa a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
"Os casamentos sempre foram sustentados por uma resignação histórica das mulheres: casou, tinha de aguentar até o fim", comenta o jurista Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Ele aponta o movimento feminista como um dos responsáveis para que "as mulheres, como sujeitos desejantes, passassem a se entender como sujeito de direitos e desejos". "E isso mudou o rumo da história dos casamentos no mundo todo, com a quebra da estrutura patriarcal hierarquizada."
"Posso afirmar, em 40 anos de advocacia de família, que a maioria da iniciativa dos divórcios é por parte da mulher", acrescenta. Vale ressaltar que o primeiro divórcio do Brasil, em 1977, partiu da vontade de uma mulher, a juíza de paz Arethuza de Aguiar, então com 38 anos, dois dias após a lei ter sido sancionada.
Mas se antes era preciso recorrer à Justiça, mesmo para casos consensuais, desde 2007 houve uma simplificação: divórcios amigáveis passaram a ser concedidos por via administrativa, ou seja, apenas com os dois comparecendo a um tabelionato de notas e apresentando o pedido.
Agilidade bem-vinda
"A chamada 'fuga do poder judiciário' é uma tendência moderna, que busca ao máximo evitar os conhecidos percalços de se recorrer à estrutura estatal", contextualiza o advogado Marco Antonio dos Anjos, colaborador do grupo Direito Privado Europeu da Universidade de Compostela, na Espanha. Ele cita exemplos de outros países que admitem prática semelhante, como Portugal, Espanha e Itália, onde divórcios podem ser oficializados por via administrativa também em órgãos notariais.
"Entretanto, na Argentina, país vizinho que tem um Código Civil mais recente [2016] que o brasileiro, o divórcio deve ser judicial. Talvez isso ocorra porque exista a compreensão de que se trata da maneira mais adequada de o Estado acompanhar os efeitos do fim da relação conjugal", compara o juiz de direito Fábio Calheiros do Nascimento, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie Alphaville.
Dos Anjos avalia que a implementação do divórcio extrajudicial no Brasil tornou o processo "mais rápido e mais barato", facilitando "o exercício de direitos". De acordo com dados levantados pelo Colégio Notarial do Brasil (CNB), de lá para cá mais de 1 milhão de divórcios já foram concedidos dessa forma: 255 mil em São Paulo, 113 mil no Paraná e 98 mil em Minas Gerais. Importante frisar: essa modalidade só funciona para casais sem filhos e que desejam fazer o trâmite de modo consensual.
Segundo o vice-presidente da seção paulista do CNB, Andrey Guimarães Duarte, o maior ganho para o cidadão está na agilidade. Um processo judicial atualmente leva uma média de dois anos, conforme dados do CNJ, enquanto no administrativo, "com todos os documentos em mãos, o casal pode sair com o divórcio no mesmo dia", compara.
Os custos obedecem a tabelas estaduais. No caso de São Paulo, um divórcio extrajudicial custa R$ 548,68. Caso haja bens a partilhar, o valor muda e segue uma faixa de valores. "Tomemos como exemplo uma partilha de imóvel de R$ 500 mil. Nesse caso, a escritura pública de divórcio sairá pelo valor de R$ 4.839,75", calcula Duarte.
Já os custos judiciais podem variar muito. Conforme juristas ouvidos pela reportagem, dificilmente sai por menos de R$ 4,5 mil. Dos Anjos estima que, no total, considerando todas as taxas, a via administrativa representa uma economia de pelo menos 50% para o casal.
Há também benefício aos cofres públicos: em média, um divórcio pela via judicial acaba custando ao país R$ 1.676, de acordo com números do Conselho Nacional de Justiça. Isso significa que a via administrativa já representa uma economia pública na casa de R$ 1,7 bilhão.
Mudanças recentes no direito conjugal
Nos últimos anos, algumas medidas facilitaram ainda mais o divórcio no Brasil. Em 2010 começou a vigorar uma emenda constitucional que retirou os prazos para a dissolução – antes era preciso comprovar a separação de pelo menos um ano. Já no primeiro ano da medida, os divórcios extrajudiciais no Brasil aumentaram de quase 38 mil em 2009 para mais de 63 mil em 2010.
Como lembra Cunha, essa emenda também trouxe outros avanços: "Sepultou de vez a discussão de culpa. Não existe mais, juridicamente, um culpado pelo fim do casamento. Ambos são responsáveis pelo fim do amor. Em outras palavras, trocamos o discurso da culpa pelo da responsabilidade. E o Estado não mais interfere na vida privada."
"Isso foi um grande avanço, pois um dos motivos da demora dos processos de divórcio é que se ficava anos e anos discutindo quem era o culpado pelo fim do casamento. E esse era um dos maiores sinais de atraso do ordenamento jurídico brasileiro, algo que a Alemanha, por exemplo, já tinha abolido há muitos anos." Especialista em direito de família, o advogado Benito Conde ressalta que a questão da motivação ainda é levada em conta nos Estados Unidos, por exemplo, "o que pode causar entraves e dificultar" o processo.
Outra inovação recente resultou das necessidades impostas pela pandemia de covid-19, mas acabou incorporada ao sistema: desde 2020 os cartórios de notas foram autorizados a realizar divórcios de forma online. Uma das primeiras a se beneficiar desse formato foi a analista de comércio exterior Nair Castilho. Casada no Brasil e morando na Irlanda, ela precisaria viajar ao país para formalizar seu divórcio. Foi quando soube que o divórcio online fora aprovado.
"Marcamos a data e, em agosto de 2020, o cartório em São Bernardo, nossa advogada em Santos, eu em Limerick e meu marido em Dublin participamos de uma videochamada e oficializamos o divórcio direto consensual. A facilidade de fazer tudo online ajudou em vários aspectos, especialmente naquele momento caótico em que estávamos."
Divórcio tem boa aceitação no Brasil
O advogado Conde cita uma pesquisa realizada pela Universidade de Granada, Espanha, de que constou que o Brasil é o país em que melhor se aceita o divórcio, considerando 35 nações analisadas. "O amadurecimento da população com relação ao tema contribuiu de forma significativa para tornar o país um dos menos burocráticos quando o assunto é a extinção da relação conjugal."
Divorciada em 2009 depois de um casamento de quatro anos, a empresária Meg Sousa é a prova dessa maturidade. No processo de sua separação, decidiu fazer uma festa para "finalizar um ciclo que, normalmente, é doloroso" com "criatividade e leveza".
Passou a ser procurada por outras que queriam também uma festa de divórcio. E fez da ideia um negócio. "O mais interessante é que a maioria dos meus clientes são mulheres", comenta Sousa, ressaltando que acha "importante quebrar o paradigma de que todo término de casamento precisa ser triste e sofrido".