Doces para meninos, lágrimas para meninas
22 de março de 2017"É uma menina!"
As três palavras encheram de terror o coração de Jaya Sable quando ela deu à luz há dez anos. Seu marido e sua família queriam muito um menino, e nem a visitaram no hospital. Jaya foi punida quando voltou para casa, por não ter gerado um filho homem. O marido e os sogros bateram nela e a xingaram durante meses. Um dia a atacaram com ácido, desfigurando parcialmente seu rosto. Eles até conseguiram que Jaya fosse legalmente declarada morta, obtendo um certificado de óbito falso.
"Às vezes eu desejo ter dado à luz um menino. Minha vida teria sido diferente. Eu certamente teria sido poupada dessa tortura", diz a mulher de 27 anos, deitada no leito de hospital em Pune, se recuperando de uma segunda cirurgia plástica, com o braço direito enfaixado, seu peito, pescoço e mandíbula marcados por profundas cicatrizes.
O caso de Jaya é extremo, mas serve de exemplo para a preferência generalizada por meninos em relação às meninas na Índia, que levou a abortos desenfreados de fetos do sexo feminino, infanticídios, negligência em relação a meninas e, no caso de Jaya, a tentativa de assassinato.
Ativistas afirmam que milhões de fetos femininos foram abortados nos últimos anos, apesar de a legislação proibir o rastreio sexual pré-natal, e de campanhas governamentais apelarem para que as pessoas não matem suas filhas. No início de março, a polícia do distrito de Sangli, em Maharashtra, a cerca de 230 quilômetros ao sul de Pune, descobriu 19 fetos femininos abortados perto de um hospital, que as autoridades acreditam ser uma clínica de abortos ilegais.
A preferência por filhos homens no país também teve um impacto corrosivo sobre a proporção entre os sexos da Índia. De acordo com o censo de 2011, para cada mil meninos nascidos na Índia, nasceram apenas 927 meninas. As últimas estatísticas, divulgadas no início de 2016, mostraram que a cifra caiu ainda mais, para 918.
Incentivo ao parto de meninas
As estatísticas fizeram o médico Ganesh Rakh se dar conta da seriedade da situação. O médico, que trata Jaya em seu hospital, relata perceber que sempre que uma mulher grávida chega para o parto, todos os seus parentes vêm cheios de esperança de que o bebê seja um menino. "Eles comemoravam e distribuíam doces quando nascia um menino. Mas quando uma menina nascia, os parentes desapareciam, a mãe chorava, as famílias pediam um desconto", diz o médico, de 41 anos.
Isso levou Rakh a lançar em seu hospital em janeiro de 2012 a iniciativa Mulgi Vachva Abhiyan, que, traduzida da língua marata, quer dizer "campanha para salvar a criança menina". A ideia é simples: Rakh abre mão de todas as taxas no caso do nascimento de uma menina, e a equipe do hospital celebra a chegada do bebê com bolo e velinhas. "Nós queremos enviar uma mensagem de que o nascimento de uma menina vale a pena se comemorar", diz Rakh. Mais de 500 meninas nasceram em seu hospital desde o lançamento da campanha. Nenhum dos pais teve que pagar pelo serviço.
Mas Rakh está ciente de que uma campanha sozinha não vai resolver o problema. Uma grande parte do seu trabalho consiste em fornecer aconselhamento a mulheres grávidas e a seus familiares.
Já que muitas famílias são loucas para ter um menino, colocando uma enorme pressão sobre a futura mãe, Rakh diz que tenta ir contra isso repetindo o mantra "você vai ter uma menina" desde o primeiro dia, para preparar mentalmente a família – mesmo que ele não saiba o sexo do bebê e que seja legalmente proibido informá-lo à família.
"Às vezes, nossa primeira impressão é de que a paciente e sua família reagem bastante negativamente quando eu digo que vai ser uma garota. Então, eu sei que precisamos prestar mais atenção no caso e monitorá-lo de perto", explica Rakh. "Nosso objetivo é garantir que o feto permaneça saudável e cresça bem, e que a família não realize um teste de determinação de sexo ilegal ou um feticídio feminino nesses nove meses."
O médico e sua equipe passam muito tempo tentando entender as preocupações da família e aliviando seus medos sobre ter uma filha. Rakh também organiza passeatas pelas ruas de Pune, para convencer as pessoas de que uma filha é tão preciosa quanto um filho. Ele entrou em contato com médicos de todo o país para se juntarem a ele em sua campanha – e diz que muitos se comprometeram a apoiar.
Medo e fé cega
Sua experiência na área deu a Rakh uma visão profunda sobre as mentalidades e crenças por trás da preferência tradicional pelos meninos. "A mentalidade aqui é que a família não está completa sem um menino. O menino é aquele que mantém a linhagem famíliar", explica Rakh.
"As meninas, por outro lado, são vistas como um fardo, que vão deixar os pais para formar seus lares após o casamento. Os costumes do casamento requerem que a família da menina pague um grande dote para poder casá-la. E eles também têm que assumir todas as despesas do casamento Não é de admirar que as pessoas tenham medo de ter uma filha", completa.
São pessoas como Chandabai Budhwant, operária de 55 anos de uma aldeia fora de Pune. Ela foi ao hospital para conhecer sua neta de três dias. Ela própria teve seis filhas e um filho. "Depois que tive um filho, senti como se tivesse finalmente me tornado alguém de sucesso. As pessoas deixaram de me provocar e de me dizer coisas indecentes porque eu só tinha filhas", lembra. "Eu não queria que minhas próprias filhas passassem pela mesma coisa, por isso eu esperava que elas tivessem filhos, temia por elas."
É o medo que levou Chandabai a visitar "homens santos" e a obter "remédios" deles e a orar em diferentes templos para garantir que suas filhas dessem à luz um filho.
Mas Chandabai insiste que ela e seus parentes mudaram de ideia desde que conheceram o médico Ganesh Rakh. Ela agora está feliz que sua filha Ashwini tenha dado à luz uma menina – que os funcionários do hospital chamam de Angel. Chandabai diz que a família planeja educá-la e não somente gastar grandes somas de dinheiro em seu casamento, quando ela crescer.
Enfermeiras e médicos do hospital se aglomeram em torno da criança, pressionando flores nas mãos da mãe radiante, cortando um bolo em honra da menina e cantando Parabéns pra você.
Rakh acredita que fazer uma família mudar de ideia sobre ter uma filha pode render mais frutos futuros. "Eles falam sobre isso com outras pessoas, que também repensam suas próprias ideias. Então, isso tem um efeito dominó, e acho que pode trazer mudanças reais", ressalta. "No dia em que as pessoas começarem a celebrar o nascimento de uma filha é quando eu vou começar a cobrar minhas taxas novamente", brinca.