Documentos achados em porão expõem segredos da ditadura militar argentina
5 de novembro de 2013Ao final do seu regime de terror, os militares argentinos haviam perdido até mesmo sua implacável precisão. Em 1983, o general Reynaldo Bignone ordenara a destruição de todos os documentos que pudessem comprometer o regime. Estava-se às vésperas do retorno à democracia, e a junta militar tinha motivos de sobra para temer consequências jurídicas.
Mas, ao que tudo indica, alguns desses arquivos escaparam à destruição. Três décadas depois, milhares de documentos do período entre 1976 e 1983 foram encontrados no porão do Edifício Cóndor, o quartel-general da Força Aérea Argentina, em Buenos Aires.
Atas e listas negras
O material estava armazenado em dois cofres, dois armários e diversas prateleiras. Nos cadernos, pastas e arquivos estão atas de reuniões regulares da junta militar; a opinião dos generais sobre vários eventos políticos ou planos do regime; instruções de como lidar com críticas da comunidade internacional, especialmente em relação ao desaparecimento de opositores; e "listas negras", nas quais artistas e intelectuais eram classificados em níveis de "periculosidade" – entre eles o escritor Julio Cortázar, a popular cantora Mercedes Sosa e o jornalista Osvaldo Bayer.
Os documentos revelam ainda a proibição de canções de estrelas internacionais dos anos 1970 e 1980, como John Lennon, Pink Floyd e Rod Stewart. Além de um plano detalhado de como os militares queriam garantir seu domínio político até o ano de 2000.
Para o ministro da Defesa, Agustín Rossi, os arquivos são de um enorme valor histórico. "É a primeira vez que temos acesso a uma documentação que abrange todo o período da ditadura, com a vantagem de que está ordenada cronologicamente e com um índice temático", disse Rossi.
Os documentos serão analisados, nos próximos seis meses, por especialistas, que deverão não apenas observar seu valor histórico, mas também decidir se esse material pode ser usado como prova em processos, ainda em curso, de violações de direitos humanos durante a ditadura.
Embate com a imprensa
A advogada Graciela Peñafort, que trabalha para o governo argentino, diz que o valor jurídico é grande. "Estamos falando de documentos originais. Eles podem ser utilizados em processos que tratam da política econômica da ditadura e podem provar que havia um plano econômico baseado na violação sistemática da Constituição e dos direitos humanos de empresários e acionistas", afirma.
A advogada se refere especialmente ao conjunto de documentos que trata da venda da única fábrica de papel jornal da Argentina, a Papel Prensa. A família do então proprietário foi presa e torturada pelos militares, e a empresa teria sido vendida bem abaixo do seu valor para duas empresas de mídia existentes até hoje, os jornais Clarín e La Nación.
A denúncia não é nova, mas o governo espera que os documentos agora encontrados provem que a venda foi feita com o conhecimento e o apoio dos militares. "Descobrimos 13 registros de reuniões da junta militar que mostram que o regime lidou intensamente com a questão", assegurou Rossi. "Para a junta militar, a detenção da família Graiver [então proprietária] estava diretamente relacionada à venda da Papel Prensa."
Os dois periódicos adotam uma linha crítica em relação ao governo da presidente Cristina Kirchner, o que dá à revelação da descoberta dos documentos secretos um significado adicional. O Grupo Clarín é combatido com todos os meios pelo governo. A nova lei de imprensa do país, que o governo diz que vai democratizar o setor e acabar com monopólios, visa claramente enfraquecer a empresa, que até há poucos anos estava ao lado do governo Kirchner.
Esperança de novas descobertas
Ao que tudo indica, os documentos podem mesmo ter um enorme valor para os processos que tratam das violações de direitos humanos durante a ditadura. Desde que as leis de anistia foram abolidas, em 2006, 370 pessoas já foram condenadas por crimes cometidos durante a ditadura.
Rossi disser ter instruído todos os chefes das Forças Armadas a continuar procurando em "lugares incomuns" por mais documentos históricos. "Esperamos que mais arquivos apareçam", declarou. Até a atual descoberta, os militares sempre haviam afirmado que não havia mais documentos do período da ditadura.