Dois anos após a travessia: o destino de três refugiados
27 de abril de 2017Pelas contas da ONU, até o final de 2015, aproximadamente 65 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas, emprego, amigos, familiares e planos para o futuro para fugir de guerras e da perseguição em seus próprios países. Grande parte delas simplesmente acordou um dia e partiu.
Esse dia foi 5 de agosto de 2015 para Hamdi Al Kassar. O jornalista nasceu em Damasco, na Síria, onde trabalhava como apresentador de televisão, tinha apartamento próprio, carro e era – ou melhor, é – casado. Há quase dois anos ele vive na Alemanha, longe da esposa. Diferentemente de muitos que fogem da miséria, o jornalista é um asilado político e, por questões de segurança, pediu que a razão de sua fuga fosse mantida em sigilo.
Ele conta que não foi difícil organizar a fuga. Kassar pagou 4 mil dólares a um traficante de pessoas por uma viagem com destino final em Berlim. Durante a travessia do Mar Mediterrâneo, num barco com capacidade para 20 pessoas, mas que levava 63, o pavor o tomou por completo. Muitos pediam que Deus permitisse que chegassem vivos em terra firme. Aquele vozerio, a agonia, o desespero davam o tom da travessia. "Pensei: se eu morrer agora, do que adianta sofrer? E decidi: não importa o que aconteça, eu vou ser sempre otimista." E adormeceu no barco, no meio do mar.
Como no filme A vida é bela, de Roberto Begnini – no qual o protagonista finge estar participando de um jogo para que o filho não perceba que eles estão num campo de concentração nazista –, Kassar, um privilegiado entre refugiados, colocou na cabeça que era um turista desbravando a Europa. Em Belgrado, o sírio de 28 anos passou duas noites num hotel quatro estrelas, com jacuzzi e sauna. Ao chegar a Berlim, o abrigo estava lotado. Recebeu então um cheque de 50 euros e foi procurar um hotel, onde morou por um ano, até que seu pedido de asilo fosse aceito. Hoje o sírio tem permissão para morar e trabalhar na Alemanha.
Mas a vida não é um filme. Na Alemanha, é difícil para um jornalista que fala árabe e inglês arrumar emprego. Kassar, que tinha uma carreira promissora em seu país, teve que aprender a falar e escrever em outra língua. Faz oito meses que ele estuda alemão num curso de integração. Kassar poderia se sentir apenas mais um entre 1 milhão de refugiados que vivem na Alemanha, mas desde aquele dia no barco da agonia, ele sorri diante dos problemas. Ainda não encontrou um emprego, mas fez um estágio na emissora alemã RBB e é voluntário na Anistia Internacional.
Apesar de tudo, para o sírio, que está prestes a reencontrar a esposa, às vezes até parece que a vida foi rascunhada por um roteirista. Foi assim que Kassar se sentiu ao ser convidado para entrevistar a chanceler alemã Angela Merkel, no início de abril: como se estivesse num filme. "De repente, fui um dos escolhidos para entrevistar a chanceler alemã em seu vídeo semanal. Eu estava muito nervoso, mas depois que ela conversou comigo, a pressão baixou. A mensagem foi que nós procurássemos ser curiosos, para aprender. Mas Merkel também pediu que os alemães continuassem se abrindo para essa questão, que é de todos."
Kassad também quis deixar uma mensagem, em alemão, às pessoas que agora são chamadas de refugiados: "Quando eu cheguei na Alemanha, não foi fácil. Burocracia, cultura, povo e idioma diferentes. Mas tenho que ficar aqui até a guerra acabar, para que não apenas eu, mas todos nós, refugiados, possamos voltar para nossas casas. Enquanto isso, me esforço para entender esta sociedade. Aprendi o idioma, fiz muitas amizades, trabalho muito, mas sempre e, acima de tudo, sou positivo. Não importa o que enfrentemos, temos de ser positivos."
Um questão de sorte
O dia de partir para a afegã Bibigol Mosavi foi 7 de agosto de 2015. Ela teve mais sorte do que Kassar: veio com marido, irmão e os dois filhos, um de 10 e outro de 12 anos.
Nascida na província de Ghazni, Mosavi conta que nunca se sentiu segura. Um dia, ela e a mãe estavam sentadas na laje de casa quando foram atacadas por flechas. Bem distante daquela realidade, a família conseguiu permissão para ficar na Alemanha ainda numa época em que a cota de asilos concedidos a afegãos era de 70,6%. Hoje, este número caiu para 46,7% dos requerentes.
Bibigol também fez a travessia do Mediterrâneo. Ela conta que 60 pessoas foram socadas em um barco, levando chicotadas para se encolherem a fim de que todos pudessem embarcar. Em alto mar, o motor do barco parou de funcionar por 40 minutos. Eles tentavam tirar água do barco com seus sapatos. Uma mulher engoliu tanta água que ficou inconsciente, mas por sorte não morreu. Homens pulavam do barco desesperados. Vendo que não sobreviveriam, voltavam. A família Mosavi estava sentada na borda do barco. Se a morte viesse, eles seriam os primeiros.
A mulher se sente livre na Alemanha, ao andar de bicicleta. A primeira coisa que percebeu quando chegou foi que a lei vale para todos. " Enfim, temos paz e vivemos sem medo." A afegã está estudando todo dia para realizar o sonho de se tornar educadora. Ela tem a ajuda da organização humanitária alemã Help, instituição que apoia pessoas no mundo todo. Com a crise dos refugiados, a Help agora também assiste essas pessoas a encontrarem um emprego na Alemanha.
Permissão para ser livre
Para Sajad Jadidi, o dia da fuga foi 22 de setembro de 2015. O jovem de 19 anos é o único entre os entrevistados que ainda não tem permissão para ficar na Alemanha. A resposta deve chegar a qualquer momento, mas suas chances atualmente são pequenas. Ele é iraniano. Seu país não está em guerra, como a Síria, mas, segundo dados da Anistia Internacional, o Irã foi responsável por 55% das execuções no mundo.
Ele mostrou o mapa em seu celular: foram mais de 30 dias cruzando a rota dos Bálcãs – fechada em março de 2016 – para chegar à Alemanha. De caminhão, a pé, de carro, de ônibus, de barco, de navio. Um navio que, nas contas de Jadidi, levava mais ou menos 2 mil pessoas e voltava, a cada 12 horas, para recolher mais.
Enquanto espera a decisão do Departamento de Imigração e Refugiados da Alemanha, Jadidi estuda numa escola em Bonn, recebe 340 euros do governo alemão por mês e mora em um abrigo para refugiados. Ele joga futebol e vôlei duas vezes por semana, participa do teatro na escola e faz trabalho voluntário em uma igreja que oferece curso de integração.
Ele sente saudades da mãe, mas não pode voltar ao Irã. "Eu fazia propaganda contra o presidente." Jadidi não quer mais saber de religião, mas acredita que exista algo como destino. Em poucas semanas, o jovem iraniano vai saber o que o governo alemão decidiu sobre o seu futuro.