Domínio da Microsoft e Nvidia prejudica setor de IA?
23 de junho de 2024Com enorme rapidez, a Microsoft e a Nvidia assumiram a dianteira na revolução da inteligência artificial (IA). Ambas contam entre as três maiores companhias do mundo, tendo, combinadas, um valor de mercado de 6,6 trilhões de dólares.
O sucesso recente da Microsoft foi sedimentado por sua aposta de 13 bilhões de dólares na OpenAI, a startup por trás do chatbot ChatGPT; enquanto a Nvidia ostenta os chips mais avançados do mundo, vitais para a operação de sistemas de IA de alto desempenho.
Essa bonança, porém, chamou a atenção das autoridades anticartel dos Estados Unidos. No início de junho, o Departamento de Justiça (DOJ) e a Comissão Federal de Comércio (FTC) fecharam um acordo sobre como investigar o domínio de ambas as gigantes da alta tecnologia no setor de IA.
A FTC vai focar na proximidade entre Microsoft e OpenAI, cuja empresa-matriz é sem fins lucrativos; enquanto o DOJ vai se concentrar na vantagem competitiva da Nvidia. Detendo 80% do mercado de semicondutores de AI, ela é atualmente avaliada em 3,32 trilhões de dólares, ante 364 bilhões apenas dois anos atrás.
"A big tech ganhou poder demais nos últimos 15 anos, e os reguladores estavam dormindo no volante", critica a advogada e economista Simonetta Vezzoso, da Universidade de Trento. "Agora eles teme que isso esteja se repetindo com a IA e querem evitar isso."
Startups compradas poderiam estar revolucionando IA
Startups necessitam grande volume de dados, espaço de armazenamento e capacidade de processamento para poder treinar seus chatbots de IA, que é onde os reguladores acreditam haver poder demais das gigantes. Há indícios de que empresas menores estão sendo forçadas a fechar acordos exclusivos e opacos para empregar a tecnologia da Nvidia, da Microsoft e suas rivais, o que pode conferir vantagem ainda maior aos players já dominantes.
"As autoridades anticartel querem proteger a inovação vinda das startups. Esses acordos vêm com muitas amarras, então a big tech poderia estar opondo obstáculos a essa competição", alerta Vezzoso.
Numa conferência sobre inteligência artificial na Universidade de Stanford, no início de junho, o procurador-geral assistente da Divisão Anticartel do DOJ, Jonathan Kanter, confirmou que "poderosos efeitos de rede podem permitir às empresas dominantes controlarem esses novos mercados de IA".
A aquisição da Inflection AI – startup responsável pelo app assistente pessoal Pi – pela Microsoft em março, por 650 milhões de dólares, também suscitou ressalvas, pois o acordo pode ter sido elaborado de forma a contornar as normas de transparência para fusões.
"A Microsoft comprou a Inflection sem comprar", afirma Pedro Domingos, professor emérito de informática da Universidade de Washington. "Ela a partiu em pedaços, contratou a maioria de seus funcionários e pagou compensações para os investidores."
Para os reguladores anticartel, a falta de fiscalização em fusões anteriores resultou na aquisição, pelas grandes empresas de tecnologia, de centenas de startups que poderiam ter revolucionado o setor ainda mais. Assim, o impacto sobre a inovação também estará no centro de suas investigações.
A fim de remediar a situação, os reguladores antimonopólio se propõem agir mais rapidamente e "reverter o ônus da prova" de si mesmos para as gigantes da tecnologia. Vezzoso, que é consultora externa do grupo de direitos humanos Article 19, pleiteia "medidas muito firmes para a big tech", caso necessário.
"Eu gostaria de ver os reguladores serem muito firmes. Se uma companhia de big tech quer comprar uma pequena startup, ela deveria ter que mostrar que não há uma questão anticompetitiva."
Controle estatal nos EUA vai afetar setor de IA?
Por sua vez, Domingos considera "engraçado" abrir processos anticartel "não por danos que foram causados, mas pelos que poderão vir a acontecer", lembrando como o diretor executivo da Meta, Mark Zuckerberg, tem repetido que o Instagram não seria o sucesso que é hoje se a Facebook não o tivesse comprado.
"A Facebook deu ao Instagram um grau enorme de infraestrutura e expertise que ele não tinha. Avançando no tempo, se pode aplicar o mesmo raciocínio à Microsoft e a Nvidia, e a todas as startups que elas vêm comprando", propõe o autor do livro The master algorithm: How the quest for the ultimate learning machine will remake our world (O algoritmo mestre: Como a caça à máquina de aprendizado definitiva vai refazer nosso mundo).
Neste ano eleitoral de 2024, o presidente dos EUA, Joe Biden, prometeu mais uma vez que o escrutínio das gigantes da alta tecnologia será uma prioridade de seu governo. Alguns juristas percebem uma abordagem mais colaborativa entre a FTC e o DOJ para coibir as práticas comerciais do Vale do Silício.
"As agências costumavam dividir os casos de acordo com o setor, mas como esse mercado é tão grande e importante para a persecução antimonopólio, elas estão compartilhando a responsabilidade e cooperando de perto", comentou recentemente ao jornal The Guardian Rebecca Haw Allensworth, professora da Escola de Direito Vanderbilt.
À medida que se aproximam as eleições presidenciais americanas, talvez só reste uma pequena janela de oportunidade para a administração Biden agir, e suas medidas ainda poderão ser anuladas se o republicano Donald Trump chegar à Casa Branca em novembro.
Domingos chama a atenção para as quase mil leis introduzidas pelos parlamentares federais e estaduais para regular a IA desde que o ChatGPT foi lançado, notando que alguns políticos têm "grande hostilidade em relação às companhias de big tech e querem usar a IA como instrumento para atacá-las".
O escrutínio adicional já está tendo um efeito desencorajador sobre o setor tecnológico, com as gigantes ficando cada vez mais temerosas de adquirir startups promissoras.
Segundo a empresa de pesquisa 451 Research, especializada no setor, em 2023 as fusões e aquisições bateram o recorde negativo dos últimos anos, com o valor das transações caindo abaixo de 300 bilhões de dólares – contra 800 bilhões de dólares no ano anterior. Por sua vez, a plataforma Capital IQ Pro registrou apenas quatro aquisições por parte dos grandes protagonistas estratégicos da alta tecnologia, como Meta, Salesforce, Alphabet, Apple e Amazon, contra 18 em 2022.
"As companhias de big tech agora estão com medo de fazer aquisições, o que prejudica o ecossistema, porque o destino de muitas startups é serem compradas, e todo mundo se beneficia disso", defende Domingos.