Em meio a críticas, França amplia vigilância a cidadãos
5 de maio de 2015"Nunca a ameaça foi tão grande", disse no mês passado o primeiro-ministro francês, Manuel Valls, diante da imprensa, depois que as autoridades descobriram, por acaso, um plano para atacar pelo menos uma igreja nos arredores de Paris.
Caso o estudante argelino Sid Ahmed Ghlam não tivesse acidentalmente dado um tiro na própria perna e chamado a ambulância – levando a polícia a achar o arsenal de armas e planos para o ataque à igreja –, a França poderia ter sofrido outra tragédia provocada por jihadistas.
O caso acirrou ainda mais os temores dos franceses, depois que 17 pessoas foram mortas em janeiro, em ataques terroristas à revista Charlie Hebdo e a um supermercado judaico. E é citado também como um exemplo de como um "Patriot Act" francês é, agora, supostamente mais necessário do que nunca.
O projeto de lei, que propõe um novo conjunto de medidas de coleta de informações, será a primeira atualização das atuais leis de vigilância da França, que datam de 1991, muito antes de telefones celulares e da internet se tornarem comuns. Mas especialistas dizem que o governo está indo longe demais na espionagem de cidadãos franceses.
Aprovada nesta terça-feira (05/05) na Câmara e a ser votada no fim do mês pelo Senado, a lei permitirá o acesso imediato das agências de inteligência a dados de telefone e celular de qualquer pessoa suspeita de ter ligações com o terrorismo. As agências podem coletar e guardar esses dados por cinco anos.
"Caixas-pretas"
Mas o que os especialistas em privacidade e direitos humanos acham mais preocupante são as "caixas-pretas" em provedores de serviços de internet, que utilizariam um algoritmo de computador para rastrear todas as comunicações que passam pelas redes, para analisar comunicações suspeitas de forma mais precisa.
"Se os dados interceptados forem criptografados, como em mensagens de texto ou e-mails, as autoridades francesas poderiam mantê-los indefinidamente", diz Carly Nyst, diretor jurídico da ONG Privacy International. "Com esta forma de vigilância em massa, padrões digitais serão monitorados em nível governamental. Esta vigilância seria semelhante à da NSA ou do GCHQ, feita fora de quaisquer estruturas legais. O que a França está tentando fazer é dar legitimidade a essa prática. É um enorme passo na direção errada."
A lei permitiria que as autoridades espionassem círculos de contatos de uma pessoa suspeita que, segundo Nyst, poderia incluir qualquer pessoa com quem eles entram em contato, até mesmo jornalistas.
"Eles se tornariam alvo de vigilância, e isso não só teria um enorme efeito sobre a privacidade, mas também um efeito intimidante, que iria impedir os jornalistas de fazer seu trabalho", avalia a ativista.
Linguagem genérica
Félix Tréguer, um membro-fundador do La Quadrature du Net, grupo de defesa dos direitos civis na internet sediado em Paris, diz que a linguagem do projeto de lei é simplesmente demasiado genérica e não define os motivos pelos quais as autoridades de inteligência poderiam obter acesso a informações de alguém. Ele também se diz preocupado com os longos períodos de retenção de dados. "Todas as acusações legais e investigações serão cobertas de sigilo. Então, vai ser muito difícil evitar abusos", alerta.
"Há várias disposições do projeto de lei que permitem que agências de inteligência penetrem em computadores, servidores ou qualquer equipamento, para ter acesso a dados e para copiar dados. E esta é uma parte muito preocupante do projeto", acrescenta. "O tipo de violação da privacidade, acessando dados de computador e copiando dados através de vírus do tipo Cavalo de Tróia é algo muito preocupante."
Tais "caixas-pretas" em redes de computadores poderiam "destruir um importante segmento da economia", disseram proeminentes empresas francesas de tecnologia, que, em uma carta a Valls, ameaçaram sair do país caso a lei seja aprovada. "Muitas empresas e potenciais clientes podem ficar incomodados pela ideia de estar sujeitos a este tipo de vigilância", diz Tréguer.
Rápido demais
Clémence Bectarte, advogado da Federação Internacional para os Direitos Humanos, em Paris, pediu mais tempo para analisar o projeto de lei, que os parlamentares franceses começaram a elaborar em julho, mas cuja aprovação foi acelerada após os ataques terroristas de janeiro.
"Estamos muito preocupados que o governo tenha escolhido este processo acelerado de enviar o projeto de lei ao Parlamento, não deixando lugar para um debate, que seria muito importante para este projeto de lei", diz Bectarte. "Isso representa um grande risco para a nação, colocar qualquer cidadão na França sob vigilância, sob razões que não são suficientemente precisas e que poderão não ser sujeitas a qualquer controle independente e eficaz de uma instância jurídica independente."
Nyst, da Privacy International, acusa o governo francês de oportunismo. "Eles estão se aproveitando dos medos com a segurança nacional originados pelos trágicos acontecimentos em torno dos ataques à Charlie Hebdo. Mas é preciso tempo para perceber que não há conexão alguma, sugestão alguma de que, caso eles tivessem esses poderes, eles poderiam ter impedido aqueles ataques", argumenta Nyst. "Nós não vimos os políticos fazendo tal conexão direta, mas eles estão manipulando a opinião pública para obter a aprovação desta lei pelo Parlamento."