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Entre floresta e praia, quilombo briga pela posse da terra

20 de abril de 2017

Há pelo menos dez anos, comunidade da Fazenda, no litoral de São Paulo, aguarda definição. Caso está na fila em meio a 1.600 processos para titulação de remanescentes de quilombos.

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José Vieira
José Vieira, de 79 anos, passa os dias esperando visitantes interessados na história do lugarFoto: DW/N. Pontes

Com passos curtos e apressados, apoiado na bengala, José Vieira é o primeiro a chegar todas as manhãs na casa de farinha. Aos 79 anos, ele passa os dias esperando visitantes interessados na história do lugar, a comunidade Quilombo da Fazenda, em Ubatuba, litoral de São Paulo.

Comunidade quilombola ajuda a preservar o meio ambiente

"Eu sou neto de escravo. Este lugar aqui pra mim é a minha casa", conta Zé Pedro, como é conhecido. Ele mantém a tradição de contar as histórias ouvidas desde a infância sobre a fuga dos escravos para dentro da mata ainda no século 19, e acredita que o avô tenha ajudado a mover aquele moinho de água.

A estrutura hoje é usada pra fazer farinha esporadicamente, quando a colheita de mandioca na comunidade é farta. Mas as roças de subsistência enfrentam restrições. Embora as famílias vivam no local há décadas, a maioria descendente de escravos, elas ainda não têm o título da terra.

"Meu avô foi filho de escravo", diz o morador Cirillio Braga. "Aqui era a área do meu pai, da minha mãe, onde eles plantavam mandioca, milho, feijão. Eles morreram, e a gente ficou cuidando do lugar", diz o produtor rural, que transformou a roça tradicional numa agrofloresta.

Caso atípico

Segundo a Constituição Federal, remanescentes de quilombos têm a garantia do reconhecimento e propriedade definitiva da terra. Dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) mostram que 220 títulos foram emitidos até agora, mas a fila de espera é longa: 1.632 processos estão em andamento no país.

Moinho hoje é usado pra fazer farinha quando a colheita de mandioca na comunidade é farta
Moinho hoje é usado pra fazer farinha quando a colheita de mandioca na comunidade é fartaFoto: DW/N. Pontes

O caso do Quilombo da Fazenda é atípico. Na década de 1950, o antigo proprietário abandonou a área, mas as famílias que trabalhavam na fazenda continuaram vivendo no local. Quase 30 anos depois, o governo estadual criou um parque de conservação ambiental para frear a especulação imobiliária e proteger a mata atlântica.

Com a medida, a paisagem não poderia mais ser alterada, e os quilombolas foram pegos de surpresa, relembra Roberto Braga, que mantém o cultivo iniciado pelo pai, em 1950. Ele conta que foi processado por mexer no terreno da sua casa sem pedir autorização para o parque.

"O morador tradicional não quer muita coisa, não. Ele quer um espacinho pra poder plantar, mexer com a terra, colher uma mandioca, uma banana. O morador é que protege essa mata, esse parque", diz sobre a relação com a área.

"Se por um lado o parque não ajudou a gente em nada, por outro lado, se ele não existisse, talvez a gente não estivesse mais aqui", reconhece Roberto.

Briga que se arrasta

Por estar dentro de um parque estadual, o caso do Quilombo da Fazenda passou para a competência do estado de São Paulo. O Incra diz acompanhar a discussão junto à Fundação Florestal, que administra o parque, e cita impasses.

"O relatório técnico-científico sobre a comunidade da Fazenda foi feito pelo estado. Mas ele sequer foi publicado, principalmente porque o parque estadual não concordou com os resultados", revela Antônio Oliveira Santos, do Incra.

Cirillio Braga
"Meu avô foi filho de escravo", diz o morador Cirillio Braga. "Aqui era a área do meu pai, da minha mãe"Foto: DW/N. Pontes

Há dez anos que o relatório em questão foi entregue à Fundação Florestal, segundo informações divulgadas pelo Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo). Questionada, a Fundação Florestal alegou que os estudos foram encaminhados para as instâncias superiores para finalização do processo, sem citar prazos.

Para a Defensoria Pública, que move uma ação para agilizar o reconhecimento, a unidade de proteção ambiental gerou restrições às atividades tradicionais da comunidade, como proibição da caça e pesca artesanais.

As medidas teriam aprofundado "o processo acelerado de criminalização, conflitos e dissolução comunal enquanto unidade de identificação étnica integradora da formação material e imaterial da nação brasileira", diz o texto ajuizado em 2016.

Uma das soluções propostas pelo Incra é recategorizar o parque para uma unidade de uso, que possa ser usada para extrativismo, por exemplo.

Morada em meio à floresta

“A nossa grande esperança é que nosso território seja reconhecido”, diz Vera Lucia Jorge Braga, presidente da associação quilombola.

O sossego, o trabalho na roça e o convívio com os vizinhos, entre a praia e a floresta, fazem com que os moradores briguem pelo direito de permanecer, diz a líder comunitária. “Se tirarem a gente daqui, a gente morre”.

Zé Pedro, morador vivo mais antigo do quilombo, diz que a posse definitiva da terra é fundamental para que a história não seja esquecida. “É importante preservar o lugar para preservar a raiz e a vida das pessoas. Não é bom ter uma água limpa? Uma comida natural? Uma mata? Isso é preservar a vida."