Esperando os diários de Beckett
13 de abril de 2006O centenário de nascimento de Samuel Beckett voltou a chamar atenção dos alemães para um capítulo relativamente desconhecido da biografia do escritor irlandês: sua viagem de estudos de seis meses pela Alemanha nazista em 1936–37.
Durante sua estadia, Beckett escreveu diários minuciosos sobre o longo itinerário por um país onde já estivera algumas vezes no final da década de 20, em visitas ao tio William Sinclair, marchand residente em Kassel.
Não é por falta de curiosidade dos leitores que esta estadia de Beckett na Alemanha se manteve desconhecida do grande público. Fato é que os chamados German Diaries, por serem documentos pessoais, não podem ser publicados segundo o desejo do próprio escritor, cumprido pelo administrador de seu espólio, o sobrinho Edward Beckett.
Apenas pesquisadores têm acesso aos documentos, divulgados somente em 1996, pela biografia de Beckett escrita por James Knowlson.
Além do diário de Hamburgo, publicado em fragmentos numa edição limitada de 150 exemplares em 2003, com o título de Alles kommt auf so viel an (Tudo depende de tanta coisa), pela autora e editora Roswitha Quadflieg, na tradução de Erika Tophoven, o texto se mantém inacessível ao grande público.
Quadflieg e Tophoven são autoras de duas publicações recentes da passagem de Beckett por Hamburgo e Berlim, respectivamente: Beckett was here: Hamburg im Tagebuch Samuel Beckett von 1936 (Beckett esteve aqui: Hamburgo no diário de Samuel Beckett de 1936. Hamburgo: Hoffmann und Campe Verlag, 2006) e Becketts Berlin (A Berlim de Beckett. Berlin: Nicolaische Verlagsbuchhandlung, 2005).
Viagem sentimental pela Alemanha
Hamburgo, Braunschweig, Berlim, Halle, Weimar, Erfurt, Naumburg, Leipzig, Dresden, Freiberg, Bamberg, Würzburg, Nurembergue, Regensburg, Munique. A longa viagem estendida durante 24 semanas, apesar de problemas de saúde do jovem escritor de 30 anos, revela o interesse de Beckett por um país cuja língua ele aprendera como autodidata, mas pretendia dominar melhor, e cujas capitais culturais o atraíam por suas coleções de arte.
Após ter escrito Murphy, um romance que viria a ser publicado só em 1938, Beckett decidiu fazer sua expedição pela Alemanha. Para alguns estudiosos, este era um momento de desorientação, considerando as dúvidas do escritor sobre seu futuro literário, e de impasse, após o fim de um relacionamento.
Além disso, também havia a indefinição de onde se estabelecer, diante do desejo de abandonar Dublin e a falta de vontade de retornar a Paris, cidade para a qual mudaria definitivamente um ano depois. Mas também Beckett sabia que, com a ascensão do nazismo, a Alemanha se tornaria cada vez mais inacessível aos estrangeiros. Esta era a grande oportunidade para ver de perto tudo o que os museus alemães abrigavam.
Escritor desconhecido em cidade com dias contados
Ao contrário de sua estadia em Hamburgo, onde se viu cercado de artistas e interlocutores explicitamente avessos ao regime nazista, Beckett se manteve relativamente isolado em Berlim, apenas em contato esporádico com pessoas fora de seu círculo intelectual.
A maior parte das seis semanas passadas na capital alemã, de dezembro de 1936 a janeiro de 37, ele dedicou à visita sistemática dos acervos de arte e arqueologia da Ilha dos Museus.
Beckett captou muito bem o clima que pesava sobre a Alemanha, embora seja difícil de saber até que ponto ele conseguia avaliar o alcance que o nazismo viria a ter. Naquele momento, muitos intelectuais alemães, inclusive Thomas Mann, ainda achavam que o regime de Hitler cairia por si só em breve. Beckett sabia, no entanto, o que esperava os críticos do regime. Na opinião dos estudiosos, este seria um dos motivos de ele economizar comentários mais longos contra o nazismo em seus diários.
O interessante ao ler o relato de Erika Tophoven sobre a passagem de Beckett por Berlim é poder acompanhar os passos de um escritor ainda desconhecido, que viria a se tornar um dos expoentes da literatura do século 20, por uma cidade que – menos de dez anos depois – viria a ser inteiramente bombardeada. Um Beckett que não conhecemos numa Berlim desaparecida.
Tradutora como guia
É espantosa a minúcia com que Beckett enumera as obras apreciadas nos museus, os bares e restaurantes pelos quais passou, os pratos que experimentou, os autores alemães que leu pela primeira vez, como Gottfried Keller e Hermann Hesse, com os quais não se mostrou nem um pouco satisfeito.
O livro Berlins Beckett é interessante por oferecer subsídio histórico, em fatos e imagens, às anotações do escritor (mantidas em parte em inglês), além de sempre remeter à sua obra, quando pertinente.
Além de ter pesquisado os jornais locais, em parte lidos por Beckett no período passado em Berlim, de ter recomposto a imagem da cidade na década de 30, Erika Tophoven – que traduz Beckett para o alemão há mais de 35 anos, em parte com seu marido, Elmar Tophoven – reconstrói a estadia berlinense como uma tradutora, sem ofuscar as palavras do autor com demasiadas informações de fundo.