Musical do Holocausto?
28 de fevereiro de 2008Milhões já leram seu famoso diário, numerosos filmes já enfocaram sua curta vida. À primeira vista, a biografia de Anne Frank não parece ser material apropriado a um musical. A jovem judia passou seus últimos anos ocultando-se dos nazistas, junto com a família, numa casa de Amsterdã, para logo morrer de tifo no campo de concentração de Bergen-Belsen.
Segundo seus realizadores, Anne Frank: Um canto à vida é antes uma "ópera trágica". Com libreto e música de José Luís Tierno e direção de cena de Daniel Garcia Chávez, a peça estréia nesta quinta-feira (28/02), no Teätro Häagen-Dasz Calderón, de Madri.
Kitty de carne e osso
Fumaça enche o palco quando "Kitty" entra em cena, uma glamorosa mulher vestida de vermelho: ela personifica os sonhos de feminilidade da jovem Anne e seu alter ego.
A trama do musical se concentra no diário que Anne ganhou ao completar 13 anos, e que denominou "Kitty". Ao escolhê-lo como confidente, ela revelou talento literário precoce, inspirando e comovendo sucessivas gerações de leitores.
O diretor executivo Rafael Alvero teve a idéia de personificar o diário dez anos atrás, ao visitar em Amsterdã a casa onde a adolescente ficou oculta entre 1942 e 1944. "Achei que um dia poderia levar ao público os sentimentos evocados pelo lugar e pela história, através de algo que sei fazer com facilidade, que é produzir música", declarou à agência de notícias AFP.
Entretanto, Um canto à vida estréia envolto em controvérsia internacional, por aquilo que os críticos consideraram o tratamento frívolo da história de uma menina morta durante o Holocausto.
Realismo ou entretenimento
O mais idoso parente vivo de Anne, seu primo Buddy Elias, de 82 anos, é radicalmente contra a idéia de apresentar o material em forma de entertainment. Ele dirige o Fundo Anne Frank, sediado na Suíça, detentor exclusivo dos direitos de publicação do diário. Apesar da resistência, a organização não pôde tomar qualquer medida legal contra Alvero, já que o livro não é citado diretamente em cena.
Até falecer, em 1980, o pai de Anne, Otto Frank, vetou terminantemente qualquer forma de adaptação artística do diário. Segundo Elias, a organização que encabeça só não se opusera às versões anteriores para teatro, cinema e televisão por considerá-las "realistas".
A Fundação Anne Frank, que mantém na capital holandesa o museu dedicado à menina judia, tem sido igualmente cautelosa em relação a produções artísticas sobre a biografia da adolescente. No entanto, vencido o ceticismo inicial, ela concedeu pleno apoio a Alvero, além de colaboração estreita em prol da precisão histórica.
Cantando temas sérios
Jan Erik Dubbelman, diretor internacional da fundação, declarou à revista Spiegel Online que Alvero o convenceu pela "qualidade de seu trabalho e por seus altos padrões". Este argumenta não ser a primeira vez que uma temática séria é levada ao palco musical, e cita como antecedentes Os miseráveis e Jesus Cristo Superstar.
Além disso, por ser em espanhol, sua produção ajudaria a divulgar a história da jovem heroína na América Latina, afirma. Dubbelman vai mais longe, esperando divulgar uma mensagem de tolerância nos países hispanófonos.
A atriz que representa o papel-título, Isabella Castillo, foi selecionada entre 800 candidatas. Os produtores gostam de traçar paralelos entre sua vida – refugiada de Cuba com a mãe, antes de se estabelecer em Miami – e o trágico destino de Anne Frank.
Como foi o caso com o premiado filme A vida é bela (1997), o musical espanhol reabre um debate sensível: quanta frivolidade e show-business se pode admitir, quando o tema é o Holocausto?
Mais um rosto para o diário
Após dois anos no esconderijo improvisado, em 1944 a família Frank foi denunciada, detida, e em seguida deportada para Bergen-Belsen. Desde a morte de Anne, seu diário foi traduzido em quase 70 idiomas.
Coincidindo com a estréia na Espanha, uma descoberta recente torna ainda um pouco mais palpável a existência de Anne Frank. O museu de Amsterdã que leva seu nome anunciou que exibirá pela primeira vez a foto de Peter Schiff, citado no diário como "meu único e verdadeiro amor".
Durante o breve namoro, o menino tinha 13 anos e Anne 11 anos. O responsável pela revelação é um amigo de infância, Ernst Michaelis. Ao visitar o museu, em janeiro último, ao lado de seus filhos e netos, ele decidiu que deveria doar a fotografia. (av)