Em 2020, quando os alunos iniciaram os estudos via aulas remotas, comecei o movimento de aceitação da Leandra – quem eu sou, quem estou me tornando. Penso que foi melhor vivenciar a transição de gênero durante o período de isolamento e "solidão", já que se trata de um processo interno que se exterioriza. Assim, pude mergulhar em terapias de baixo custo e atividades terapêuticas oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Neste momento, caminho com cautela em meu processo de transição. Quero firmar minha base educacional, financeira, emocional, e me cercar de pessoas que me aceitam como eu sou. Minha mãe é uma dessas pessoas, apesar de ainda me chamar pelo nome de batismo. Amigos próximos também não se acostumaram com meu nome social. Eles dizem que é preciso dar um tempo para se acostumarem com minha nova identidade de gênero e passarem a me chamar pelos pronomes femininos. Quando as pessoas erram de propósito, eu percebo e me afasto imediatamente.
O não contato físico com as pessoas no ambiente escolar me deu a oportunidade de concluir o ensino médio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) sem ter que enfrentar olhares de ódio, comentários maldosos e piadas desrespeitosas. Meu maior medo é morrer por ser quem eu sou. Há tempos esse temor reside em mim, até porque a falta de informação fez com que eu demorasse para me aceitar.
Escola como fábrica de conhecimento
A maior dificuldade que enfrentei no ambiente escolar foi a ausência de referências e discussões sobre identidade de gênero e orientação sexual. A falta de conhecimento também fez com que eu demorasse para me reconhecer, para desabrochar Leandra.
No entanto, às vezes me pego refletindo e chego à conclusão de que se eu iniciasse o meu processo de transição na época do Ensino Fundamental ou Ensino Médio, poderia sofrer traumas ainda maiores. As instituições de ensino deveriam apoiar e acolher as pessoas transgênero – seja através de encaminhamentos à assistência social e psicológica ou promovendo debates em torno de questões LGBTQIA+.
Cabe às escolas, fábricas de conhecimento, promoverem aos alunos perspectivas e olhares distintos dos da sociedade, que se move de forma machista e cis-heteronormativa. Afinal, em sala de aula e fora dela, a escuta de diferentes vivências tem um enorme poder de transformação, assim como a educação formal e as artes.
Hoje, curso o quinto e último semestre do curso Técnico em Administração Integrado ao PROEJA no Instituto Federal de Brasília. Precisei fazer o EJA porque não concluí o primeiro ano do Ensino Médio no tempo certo devido a várias problemáticas.
Além do sistema educacional brasileiro ser falho, é desigual. No momento em que eu estava no Ensino Médio, havia o curso técnico em Alimentos Integrado ao Ensino Médio. Senti culpa por ter a oportunidade de usufruir de uma ótima infraestrutura e de ter à disposição ótimos professores, enquanto outros estudantes da rede pública vivenciavam um ensino precário.
Saúde mental
Escolhi dedicar mais do meu tempo à arte, minha paixão, e este é outro fator que me levou ao EJA. O teatro e a dança ocupam importantíssimos lugares em minha vida. Foi no Teatro Semente que experimentei ser quem eu sou pela primeira vez. Ali, me senti livre de julgamentos e podia me expressar artisticamente.
No momento, priorizo minha saúde mental e, principalmente, os estudos. Quero construir outras possibilidades e caminhos que não sejam a prostituição - destino comum de mulheres trans. Quero trilhar a vida acadêmica, contribuir para a sociedade com conhecimentos na área da educação e da arte, que são poderosos instrumentos de transformação social. Por isso, este ano pretendo prestar o Enem e o vestibular da Universidade de Brasília. Quero cursar Licenciatura em Artes Cênicas. Na medida do possível, me planejo em relação ao tempo para estudar, porque trabalho pela manhã e tenho aulas do EJA à noite. Mas estou confiante de que, mesmo com o tempo apertado, vou conseguir me sair bem. O projeto Salvaguarda está sendo uma oportunidade e tanto para que eu e outras pessoas consigam adentrar na universidade.
A dica que eu dou para estudantes trans ou cis é que valorizem e cuidem da saúde mental. Procurem algo que os faça relaxar, lembrem-se das pequenas alegrias da vida. Eu, por exemplo, medito, faço automassagem, dança e teatro. Encontrei algumas dessas ferramentas, mas cada um tem as suas para se cuidar e focar nos estudos. É preciso lembrar de que são muitas as possibilidades. Como diz o verso de Belchior: "Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro."
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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1
A autora desta coluna é a estudante Leandra Lima Pimentel, de 21 anos.