Euforia, medo e luto coexistem na Síria após queda de Assad
23 de dezembro de 2024Faz poucos dias que o ditador sírio Bashar al-Assad caiu, após tropas rebeldes chegarem a Damasco – capital de um país arrasado por quase 14 anos de guerra civil e dominado por um regime cujo fim, por muitos anos, pareceu impensável.
"A Síria te dá as boas-vindas", anuncia uma placa na chegada da fronteira com o Líbano. E, de fato, a entrada no país é feita sem problemas.
A estrada que leva a Damasco é cercada pelos dois lados por veículos militares incendiados. Aqui e ali avistam-se uniformes – tirados às pressas por homens que os trajavam até pouco tempo atrás –, além de um blindado militar igualmente abandonado.
No primeiro posto de controle, fomos cumprimentados em tom amigável por quatro homens barbudos. Eles sorriem ao nos dar passagem. Sob Assad, esse checkpoint era conhecido por cobrar propina de viajantes.
Sonhos de um futuro melhor na Síria
A imagem da cidade de Damasco mal mudou desde o início da guerra. Mas tantos anos de conflito marcaram e exauriram a população – algo visível em muitos rostos ali.
Ainda assim, à medida em que nos aproximamos da praça Umayyad, no centro da cidade, nos deparamos com muitos rostos que transparecem otimismo. Eles celebram e se alegram com a deposição de um regime que por mais de 50 anos os governou com punho de ferro. O som das risadas se mescla às de canções revolucionárias, dos mastros pendem as novas bandeiras nacionais – com três estrelas vermelhas em vez de duas verdes –, que antes eram carregadas pela oposição. Há jovens milicianos na praça, alguns tiram fotos ao lado de civis em festa.
"Acredito num futuro melhor", diz uma jovem síria que carrega a nova bandeira nas mãos e pintada no rosto.
"E finalmente posso sonhar com um futuro melhor", dispara a amiga dela.
A alguns metros dali está Nour. O estudante diz que tinha grande esperança na construção de uma nova Síria. "A situação está muito melhor do que esperávamos. Pedimos aos novos governantes que a mantenham, e que protejam as minorias."
Nour diz que, apesar de toda a alegria, ele e seus amigos também têm medo do futuro. "Mas esperamos que os novos governantes não deem motivo para isso [ter medo]. O mais importante, agora, é que intelectuais e seculares participem da reconstrução da Síria e não deixem esse trabalho nas mãos de um único partido."
Também a jovem Sara relata olhar para o futuro com uma mistura de esperança e preocupação. "Os jovens de hoje têm uma consciência mais aguçada dos problemas do que aqueles que começaram a revolução em 2011", afirma. "Eles querem um lar para todos os sírios." Ao mesmo tempo, ela diz que os jovens também se questionam como o país irá se desenvolver sob os novos governantes.
"Como membros do movimento de libertação, apoiamos o novo primeiro-ministro", frisa Sara. "Mas também insistimos em manter nossas liberdades. Como mulher, quero poder me expressar – assim como qualquer um que queira deve poder se expressar da forma que julgar correta."
O novo chefe interino de governo, Mohammed al-Bashir, foi nomeado por novos governantes que muitos observadores consideram como islamistas. Mas esses mesmos governantes dizem querer representar todos os sírios – inclusive as minorias étnicas e religiosas.
Luto pelos sírios assassinados dentro das prisões
Ao chegarmos na prisão de Sednaya, encontramos centenas de pessoas do lado de fora. Elas estão ali para identificar os corpos de entes queridos, muitos deles são opositores que foram torturados e assassinados.
Em frente ao hospital, há fotos de 35 cadáveres. Famílias comparam as imagens com os registros guardados no celular de entes queridos "desaparecidos", na esperança de descobrir o seu paradeiro após mais de dez anos sem notícias.
No necrotério, alguns dos corpos estão desfigurados, desmembrados. "Me disseram naquela época: 'Vamos matá-lo e jogar o corpo fora, e você nunca saberá onde ele está.' Finalmente encontrei o seu corpo", diz uma mulher às lágrimas. "Pelo menos agora eu sei onde estará sua sepultura e poderei visitá-la."
Também Abu Nidal chora diante das fotos dos cadáveres. Ele procura o filho, que tinha 18 anos quando foi preso, dez anos atrás. Diz querer pelo menos ter certeza de que está morto.
Minorias na Síria temem extremismo
Enquanto na Mesquita de Umayyad predominam as novas bandeiras nacionais da Síria e diversas imagens do miliciano Ahmed al-Sharaa – também conhecido como Abu Mohammed al-Jolani e líder do principal grupo rebelde, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) –, o clima é outro nos bairros cristãos Bab Touma e Bab Sharqi.
Muitos ali se dizem preocupados com o fato de o chefe do HTS ter no passado jurado lealdade à Al-Qaeda, ainda que depois ele tenha se distanciado do grupo terrorista – nem todos acreditam nisso, e principalmente as minorias estão assustadas. Por isso, e apesar de todas as promessas dos novos governantes, líderes cristãos aconselharam fiéis a celebrar o Natal de forma discreta.
Michel, dono de uma empresa que importa equipamentos médicos, é um dos que não escondem seu medo. Parentes dele trabalharam para o governo de Assad. "Mas no nível pessoal eu estou cautelosamente otimista, também porque o dólar caiu e pela perspectiva de um possível fim das sanções", comenta.
O antigo prédio do serviço secreto da Aeronáutica é patrulhado por jovens milicianos. Eles estão ali para proteger pastas e documentos que futuramente servirão para passar a limpo o regime de Assad. A instituição também mantinha prisões, e muitos de seus detentos nunca saíram delas com vida.
Um dos que guarda a entrada é Ahmed, um jovem adulto na casa dos 20 anos. A família dele foi forçada a deixar Damasco em 2017. Ele diz querer aposentar a arma que carrega o mais rápido possível, assim que a batalha terminar, encontrar um trabalho e formar uma família. Mas, antes, ele quer ajudar a proteger os documentos do regime.
Qual é o futuro da Síria?
Além das milícias político-religiosas, há também atores seculares da sociedade civil participando da reconstrução da Síria. Eles estão principalmente interessados em evitar um monopólio do poder no país.
O advogado Anas Yudeh tem organizado nos últimos dias seminários e encontros para debater os próximos passos. Ele diz que a forma com que os novos governantes têm trabalhado preocupa, do ponto de vista político – daí a necessidade, argumenta, de um plano claro para a transição de regime.
No entorno da oposição secular, a preocupação é com o papel forte de Al-Sahraa, afirma Yudeh. É ele quem lidera o país na prática, argumenta, e é ele quem está em contato com países estrangeiros, embora não tenha sido designado de forma legítima para o cumprimento desses papéis.
E o futuro, como fica? No pior cenário, a Síria poderia tomar um caminho parecido com o do Irã pós-revolução de 1979, convertendo-se em um regime islamista, afirma a ativista e feminista Raja Tanjour.
Mas ela pondera que, ao menos por enquanto, as pessoas têm liberdade para se manifestar nas ruas. Uma outra mulher que participa da conversa acrescenta: caso novas forças extremistas prevaleçam na Sìria, só restará como opção abandonar o país.