"Exigência do México confronta Espanha com sua autoimagem"
27 de março de 2019O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, levou a público nesta segunda-feira (25/03) uma solicitação feita anteriormente à casa real espanhola e à Igreja Católica: que peçam perdão, junto ao governo mexicano, pelos "agravos", a "repressão" e até o "extermínio" sofridos pelos povos nativos do país latino-americano durante a "assim chamada Conquista".
A reação de Madri incluiu críticas e insultos a López Obrador. Mas por que tamanha indignação? A DW entrevistou o hispanista Christian Büschges sobre o passado colonial espanhol. Professor de História Ibérica e Latino-Americana da Universidade de Berna, ele é autor de títulos como Democracia e genocídio: Etnicidade no espaço político.
DW: Que sentido tem a exigência de Andrés Manuel López Obrador hoje em dia?
Christian Büschges: Não há, até agora, nenhum sinal de exigências concretas de reparações que permitam a comparação, por exemplo, com o caso da Namíbia [perante a Alemanha]. Assim, cabe perguntar-se de onde vem essa iniciativa repentina, até que ponto é parte da política simbólica, no contexto de um debate que não é novo, retomado a cada vez que se aproxima um aniversário da Conquista, especialmente desde 1992, quando se completaram os 500 anos.
Por que o governo espanhol responde "com toda firmeza", e políticos e personalidades diversas se indignam e lançam insultos, sugerem que o presidente mexicano é um "imbecil" ou "sem-vergonha", de "uma ignorância escandalosa", parte de uma corrente de pensamento "indigenista" que "não põe em contexto os fatos históricos"?
Já houve em 2017 uma declaração escandalosa do presidente da televisão espanhola, José Antonio Sánchez, de que não houvera tal Conquista, mas uma "missão civilizadora" de "povos bárbaros" etc.. Ou seja: a memória da Espanha sobre a época colonial difere da da América Latina. Coloca-se a conquista heroica em primeiro plano, a civilização. Não é por acaso que o dia nacional da Espanha se celebra em 12 de outubro, a chegada de Cristóvão Colombo à América. Por isso as reações no país são tão enfurecidas, pois entram nesse terreno do debate historiográfico sobre a memória.
Em efeito, creio que aqui o que preocupa não são possíveis exigências de reparações, mas se trata do debate político sobre como a Espanha vê a si mesma, a seu passado imperial que forma, em grande medida, a autoimagem espanhola. Essa exigência de desculpa do México bate em cheio contra essa autoimagem, essa política da memória que situa os espanhóis como os conquistadores de um grande continente, os que levaram o cristianismo ao Novo Mundo.
Daí as reações iradas, especialmente dos partidos conservadores, sobretudo do Partido Popular (PP), insistindo em afirmar que não houve destruição, que a "civilização" do continente foi uma contribuição dos espanhóis, e os "danos colaterais" eram inevitáveis. O debate é tão antigo quanto a própria Conquista e começa no século 16, com o que os espanhóis chamam de a "lenda negra" sobre a devastação da América.
Por que tanto os críticos da exigência do governo mexicano quanto os da reação do governo espanhol falam de oportunismo político?
A exigência do México chega de forma inesperada. E, no próprio país, os livros escolares falam tanto dos astecas como de Fernando Cortés como fundador da civilização mexicana. Além disso, há o modo como os governos mexicanos trataram a revolta de Chiapas em 1994 como mero problema regional de injustiça social, enquanto os zapatistas defendiam ali uma sociedade multicultural. Portanto o modo de tratar os povos indígenas, para além dos museus e do folclore, é um tema crítico no próprio México.
López Obrador parte de um posicionamento esquerdista contra o colonialismo e o imperialismo, mas ativistas indígenas dos direitos humanos ainda sofrem perseguição no México atual. Não obstante, ele adere assim a uma corrente que tem se ampliado pela América Latina, com constituições multiétnicas, exigências de proteção das culturas e línguas indígenas etc.
O debate na Espanha, por outro lado, recorda em certa medida a atual nostalgia britânica pelo império. Há uma nostalgia pela época colonial, quando a Espanha dominava o mundo. O império colonial é parte da grandeza da história da nação espanhola, sobretudo para a política oficial, embora os historiadores tenham uma visão mais diferenciada. Assim, não surpreende a reação, especialmente dos conservadores.
Não surpreende ser um governo socialista a reagir assim, apesar de a exigência de desculpa ter se dirigido à coroa, e não ao governo?
A Espanha vive um debate sobre o traslado dos restos do [ditador militar de 1938 a 1973, Francisco] Franco, em que os partidos de direita voltam a defender posições nacionalistas com mais força e êxito, como em outros países europeus. Assim, o governo socialista está jogando também essa carta nacionalista para não deixar o campo livre aos partidos conservadores.
Podem-se estabelecer aqui paralelos com exigências de desculpas por dívidas do passado em outros países, por exemplo, na Austrália perante seus aborígenes, ou na própria Alemanha, perante a Namíbia ou a Polônia?
O caso da Austrália, como o da Namíbia, é diferente, pois aí há questões jurídicas concretas, não só simbólicas, de exigência de reparações. No caso da Namíbia, o governo alemão tem uma posição pragmática, não quer entrar em debates que acarretem exigências de reparação. Porém, o tema não teve grande impacto na opinião pública, porque o passado colonial desempenha um papel menos significativo na Alemanha, não é parte do mito nacional, como na Espanha. E quando [o então chanceler federal alemão] Willy Brandt caiu de joelhos em Varsóvia [em 1970], tratou-se de pedir perdão por crimes concretos dos nazistas, dos quais o governo alemão se distanciava, um contexto totalmente diferente do da Espanha.
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