Sinfônica Heliópolis
1 de outubro de 2010O embarque da orquestra Sinfônica Heliópolis rumo a sua primeira viagem internacional foi marcado por lágrimas, expectativa e música. Ao chegarem ao aeroporto internacional de Guarulhos na última quarta-feira (29/10), os jovens da maior favela de São Paulo foram surpreendidos por um coral que, com a voz embargada, entoou cantos de despedida.
"Lá estavam não apenas amigos e colegas de classe dos músicos, mas também irmãos emocionados com o valor que essa viagem tem para todos eles", afirma Edilson Venturelli, regente e diretor do Instituto Baccarelli, mantenedor da orquestra.
A convite da Deutsche Welle, 75 jovens viajaram para Alemanha para participar da edição 2010 do festival Beethovenfest, evento cultural que reúne apresentações musicais nas ruas e teatros de Bonn a fim de celebrar as obras do compositor nascido na cidade.
Obra sob encomenda
Além do convite aos músicos regidos pelo maestro Roberto Tibiriçá, a empresa encomendou uma obra ao compositor André Mehmari, que será executada com exclusividade diante do público alemão.
Para que a batizada Cidade do Sol fosse composta, Mehmari afirma que precisou conhecer os músicos de Heliópolis. "Já no primeiro contato me surpreendi com o talento dos jovens. Pude fazer uma obra da mesma forma que teria conduzido um trabalho para uma orquestra profissional", diz.
Além de assistir a apresentações, Mehmari conheceu os talentos de cada integrante. "Dessa forma foi possível desenvolver uma obra pensada especificamente para aqueles jovens, levando em conta suas aptidões".
A composição, inspirada no repertório de Franz Schubert, procura traduzir o encontro entre os jovens músicos de Heliópolis e suas origens com a expectativa do público alemão, extremo conhecedor de música clássica. "Tentamos integrar as grandes raízes folclóricas brasileiras com a linguagem da música clássica, fazendo uma ligação com nossa cultura", resume.
Cultura essa que, de acordo com Mehmari, é rica e bem formada em música erudita. "A Europa conhece o samba e o carnaval, mas graças às colonizações nosso povo miscigenado tem capacidade de produzir música do mundo todo", afirma.
Para ele, apesar da tradição da música popular brasileira, há também uma série de profissionais – que vão além de Villa-Lobos – vivendo de música clássica. "Ao observar a orquestra de Heliópolis, por exemplo, vocês poderão ver jovens que ainda são estudantes, mas que tocam muito bem, e tem boa formação musical. No futuro, eles poderão ocupar cadeiras em orquestras internacionais, tocando música erudita, especialmente depois de uma viagem como essa, com tamanha repercussão dentro e fora do Brasil".
Venturelli conta que criou uma apresentação fora do comum. "Preparamos uma entrada especial, muito diferente da que a maioria das orquestras costuma fazer e que eu, particularmente, não gosto".
Em vez da chegada formal dos músicos em silêncio, a Sinfônica Heliópolis entrará ao som de maracatu, com direito a evolução ensaiada com o diretor de teatro José Possi Neto. "Desejamos quebrar paradigmas e cativar o público desde o início da apresentação", diz Venturelli.
A presença de Neto não foi a única participação especial nos ensaios, que contou com a colaboração da cantora de ópera Claudia Riccitelli. A artista deu aulas de canto a uma das integrantes que, em um dos pontos altos da apresentação, declama um poema musicado por Schubert e intitulado Aus Heliopolis.
Ultrapassando barreiras através da música
Segundo Ilona Schmiel, diretora do Beethovenfest, a participação da orquestra brasileira no ano em que o lema do evento é Utopia e Liberdade na Música é muito apropriada. "O contexto não poderia ser melhor", afirma Schmiel. "Estou feliz por poder ajudar a construir esta ponte entre a música clássica e as raízes do Brasil".
A diretora também se diz impressionada com o profissionalismo dos jovens. "Eles estudam muito para serem cada vez melhores. São exemplos para outras escolas, até mesmo aqui na Alemanha".
Os integrantes das orquestras ficarão hospedados em casas de famílias alemãs, também com a intenção de aproximá-los da cultura local. "Nossa ideia é criar um elo entre esses dois mundos tão distintos e ajudar a fazer com que suas utopias se tornem realidade", diz Schmiel.
Como tudo começou
Silvio Baccarelli conta que ideia de ajudar a comunidade de Heliópolis e ali fundar um grupo musical surgiu em 1996 quando, ao assistir pela televisão as imagens de um enorme incêndio que destruiu metade da favela, ele se sentiu tocado a ajudar aquelas pessoas. "Ouvi uma voz que me dizia 'faça algo por essas crianças'", lembra.
Como não tinha contato com os moradores, Baccarelli decidiu colocar seu projeto em andamento a partir de uma escola do bairro, mas se recorda que o primeiro contato foi desestimulante. "A diretora da escola não acreditava que os jovens teriam qualquer interesse por música, uma vez que precisavam lidar com questões mais imediatas, como encontrar trabalho ou resolver problemas familiares".
No entanto, o maestro não recuou e conseguiu, no mesmo ano, formar um grupo com 36 crianças. Surgia então o projeto que, em 2004, seria oficialmente batizado de Instituto Baccarelli e que hoje leciona música para cerca de 2 mil jovens de regiões que vão além do bairro de Heliópolis.
Atualmente, a entidade não apenas descobre novos talentos, como também os exporta. Músicos que tiveram seus primeiros contatos com instrumentos através do instituto tocam em orquestras de variados estados brasileiros e até em outros países, como Estados Unidos e Israel.
Cada um deles é motivo especial de orgulho para Baccarelli. "Considero todos meus filhos. Vi essas crianças desabrocharem e passarem a ter sentimento de nobreza. Além de gratificante, isso me emociona todos os dias", fala o maestro com a ternura de um pai.
Autora: Monique dos Anjos
Revisão: Roselaine Wandscheer