Expressividade brasileira e técnica alemã: pas de deux que deu certo
16 de maio de 2004É com um carinho todo especial que Johannes Below, professor de alemão da Staatliche Ballettschule de Berlim, apresenta a bailarina Bárbara Melo, 18 anos, carioca de Copacabana, da comunidade Pavão-Pavãozinho. "Esta é a nossa brasileira, a nossa bailarina mais modesta. Poderia ser até um pouquinho menos modesta", diz brincando.
Bárbara chegou em Berlim para continuar sua formação de bailarina clássica há quatro anos, através de um convênio entre a Staatliche Ballettschule Berlin (Escola Estatal de Balé de Berlim) e o Dançando Para Não Dançar, um projeto que utiliza a dança como instrumento de transformação social, combinando o ensino do balé clássico, teoria musical e um serviço mais amplo de assistência social. Um oásis em comunidades conhecidas internacionalmente pela violência e tráfico de drogas.
Bárbara conta sua experiência no projeto brasileiro: "Eu era como toda criança no Brasil, ia para a escola de manhã, passava a tarde brincando e depois dormia. Eu não sabia o que era balé até que o projeto abriu uma escola no Cantagalo. No começo, minha mãe não queria que eu fosse lá, porque tinha que atravessar duas favelas e passar por todas as bocas de fumo, mas fui com minha tia para ver. Na hora, pedi para fazer o teste e passei. Minha mãe primeiro ficou zangada, mas depois aceitou. Um ano depois fiz prova para o Municipal e passei. Foi uma felicidade geral, no projeto, na minha família. Foi uma sensação, e com 15 anos fui escolhida para vir para cá."
Cooperação de longa data
Johannes Below, que morou oito anos em São Paulo antes de trabalhar na Staatliche Ballettschule, diz que tudo começou na época da ditadura militar brasileira. Thereza Aguilar, atual coordenadora do projeto Dançando Para Não Dançar, foi aluna da escola na época em que sua família permaneceu exilada na Alemanha Oriental. A cooperação, no entanto, só se tornou possível porque o cineasta brasileiro Walter Salles financia toda a estada dos bailarinos e bailarinas do projeto na Alemanha. Atualmente, Bárbara é a única bolsista do Dançando Para Não Dançar na escola berlinense.
A relação da escola com a dança brasileira vai além do projeto. A bailarina e pedadoga brasileira Edna Azevedo é professora na Staatliche Ballettschule. Na Alemanha desde 1987, Edna já trabalhou em instituições conceituadas como a Ópera de Leipzig e a Deutsche Oper de Berlim. Ela fala entusiasmada do projeto brasileiro, que conheceu pessoalmente em fevereiro último: "É fantástico porque proporciona a pessoas que normalmente não teriam essa oportunidade e que poderiam até ir para o caminho da delinqüência um contato com a dança clássica, abrindo todo um horizonte de possibilidades. O nível técnico e artístico das aulas é muito bom, o projeto tem o cuidado de contratar ótimos professores, profissionais do Teatro Municipal."
Edna, no entanto, ressalta a importância para um profissional da dança clássica de uma estada na Alemanha: "No Brasil, ainda há um déficit muito grande quando se trata de formação completa para o bailarino. Lá não tem uma escola como essa, que ofereça tudo, em um só lugar, das 8h00 às 18h00, com toda a assistência. No Brasil é mais complicado, tem que sair correndo, pegar o ônibus de um lugar para outro, voltar correndo para o almoço, acaba ficando tudo pelo meio".
A necessidade de uma formação completa
Fundada em 1951, a Staatliche Balletttschule de Berlim foi uma das instituições criadas após a Segunda Guerra Mundial, na tentativa de reestruturar a vida cultural alemã na região leste de Berlim. Durante a existência da República Democrática Alemã (RDA), a escola se estabeleceu como um centro de formação de profissionais da dança dentro dos padrões de orientação e liberdade artística vigentes na Alemanha Oriental, de regime comunista. Com a unificação do país, passou por um período difícil de reestruturação e adaptação à nova realidade político-burocrática alemã. Hoje, a Staatliche Ballettschule é reconhecida como um celeiro de talentos para os palcos europeus. O atual diretor artístico e ex-aluno da escola, Gregor Seyffert, causa furor com suas apresentações e possui status de estrela maior na dança atual.
Até mesmo para os padrões alemães, a Staatliche Ballettschule tem um caráter exemplar. A preocupação maior da instituição é a formação completa do profissional de dança. Além das aulas práticas, os alunos cursam na própria instituição as matérias obrigatórias do currículo escolar alemão. A escola procura evitar que a especialização necessária para uma boa qualificação técnica na dança resulte em um empobrecimento intelectual do profissional.
Bárbara reconhece o valor de uma formação completa: "É vergonhoso ser uma bailarina burra. Quando eu cheguei aqui, fiquei um pouco assustada, todo mundo levava as aulas tão a sério, eu acostumada com aquela bagunça. Com o tempo fui me acostumando, aprendi o alemão e hoje acho muito importante ter essa oportunidade de estar aqui estudando". Bárbara já tem o diploma do segundo grau alemão e, em um ano e meio, termina oficialmente o curso técnico com título de bailarina profissional.
Disciplina e integração
A bailarina brasileira faz questão de destacar o apoio na escola: "No começo foi difícil, mas morei aqui no internato, fui devagar fazendo amizades e hoje já me sinto integrada, já sei me comunicar e posso dar minhas próprias opiniões", diz rindo para o namorado, bailarino profissional alemão e ex-aluno da escola, que veio acompanhar de perto a entrevista. A menina que saiu do Rio sem muita idéia do que esperar da Alemanha mostra uma maturidade e sensibilidade de quem passou com sucesso por um processo difícil de integração: "No começo era o frio, o tempo escuro, eu achava que não ia conseguir ficar. O pessoal no Brasil dizia que eu não ia agüentar a saudade, que os alemães eram fechados, duros. Eu acho que não dá para falar assim, todo país tem gente de todo tipo."
Johannes Below não vê barreiras culturais na integração dos brasileiros na escola. "A disciplina exigida pela dança clássica é difícil para todo mundo, não há nenhuma diferença neste sentido entre um bailarino brasileiro e de outra nacionalidade."
Barbara procura se adaptar da melhor forma possível: "Eu ouço pouca música brasileira, senão começo a chorar. Acho que a formação clássica me modificou, quando tento dançar samba, por exemplo, e me olho no espelho, desisto." Um vez por ano, quando passa um mês no Brasil, Bárbara faz questão de repassar seu conhecimento para outros alunos do projeto. "A Thereza me dá a oportunidade de dar aulas para as meninas menores. Eu procuro passar para elas a disciplina que aprendi aqui, às vezes eu brinco, mas na hora da aula eu exijo muita seriedade."
Bárbara tem uma carreira promissora pela frente. Com o diploma da Staatliche Ballettschule e a bagagem adquirida nesse tempo de formação, suas chances profissionais são as melhores. De tipo mignon, ela pretende adquirir na Alemanha experiência profissional por mais alguns anos e já tem algumas opções de companhias de dança em vista.