Símbolo de sistema criminal injusto nos EUA
27 de novembro de 2014O grande júri em Ferguson decidiu não indiciar o policial Darren Wilson, que matou o jovem Michael Brown num controverso incidente naquela cidade do estado americano do Missouri.
A decisão gerou revolta entre a população, e os protestos voltaram a explodir, como em agosto, após a morte de Brown. Também ocorreram manifestações em diversas outras cidades pelos Estados Unidos. Após a decisão do grande júri, prevalece um sentimento de injustiça entre a população.
Para comentar o polêmico veredicto, a DW consultou Kami Chavi Simmons, professora e diretora do Programa de Justiça Criminal da Universidade de Wake Forest, e David Harris, professor de direito da Universidade de Pittsburgh. Eles esclarecem que a decisão, por mais injusta que possa parecer, não pode ser considerada ilegal. Ela é, antes, uma consequência do sistema legal dos Estados Unidos.
Deutsche Welle: Na qualidade de professores de direito, especializados em temas raciais, os senhores se surpreenderam com a decisão do grande júri de não indiciar o policial Darren Wilson?
Kami Chavis Simmons: Infelizmente o veredicto não me surpreendeu, e há uma série de razões para tal. Primeiro, tiroteios envolvendo policiais são notoriamente difíceis de levar a tribunal. A forma como o processo do grande júri se desenvolveu neste caso, desde o início, me levou a crer que haveria muitas informações, muitas provas conflitantes, dando aos jurados razão para acreditar que não há uma causa plausível para um indiciamento – que é o procedimento padrão aqui. Isso é incomum porque, num processo de grande júri, o promotor apresenta a melhor expectativa possível – se ele acredita que há causa plausível.
David Harris: Não me surpreendi, e explico por quê. Em primeiro lugar, no sistema americano, a acusação e condenação de um policial é muito difícil e envolve fardos extrajudiciais. O agente da lei tem o direito de empregar até força letal, se há causa apropriada e razoável para ele desempenhar seu dever. Por isso, um caso contra um policial nunca é tão linear como um contra um civil.
E aí entra também todo um outro nível, que é a forma como foi conduzida a investigação do grande júri. O grande júri tem uma longa história nos Estados Unidos, que remete à época colonial e ao Reino Unido. Teoricamente, ele tem dois papéis: como escudo contra ingerências do governo, e como espada de investigação. Na prática dos EUA, na era moderna, o grande júri é empregado quase exclusivamente para investigar, sendo assim, para todos os efeitos, uma ferramenta da promotoria.
Um juiz o supervisiona nominalmente, mas o promotor público é quem o conduz, estabelece o que o grande júri deve considerar, sugere as acusações que considera corretas, lhe apresenta provas selecionadas para atingir esses objetivos. É raro um grande júri se posicionar contra o que o promotor quer.
Isso é importante, porque o que aconteceu no caso de Ferguson foi que o promotor se desviou dessa forma bastante conhecida de trabalhar com o grande júri. Houve apelos pela remoção do promotor [Robert P. McCulloch] desse caso, porque muito tempo atrás seu pai, um policial, foi assassinado por um homem negro. Ele se recusou se retirar, se declarando capaz de agir com justiça. E o que fez foi adotar um procedimento totalmente diferente para o grande júri.
Ao invés de assumir o controle dele e fazer lhe recomendações, ele simplesmente despejou as provas sobre o grande júri, sem maiores orientações. Permitiu que os jurados ouvissem testemunhas com depoimentos contraditórios e lhes deixou toda a gama de opções, sobre se deveria indiciar ou não o policial, sem os procedimentos e a orientação usuais.
Bem, o resultado pode ter sido exatamente o mesmo que se ele tivesse utilizado o grande júri da forma habitual. Mas o que as pessoas entenderam imediatamente – e eu acho que elas estavam corretas – foi que o promotor se afastara dos procedimentos habituais. E isso deixou a todos, desde o início, com a suspeita de que esse não seria um processo justo. E, mesmo achando que o resultado possa ter sido correto, as pessoas ainda pensam que esse processo não foi realizado como teria sido em qualquer outro caso. Portanto, há uma forte sensação de injustiça.
Esse procedimento incomum também fez uma coisa, na minha opinião, bastante cínica. Foi esse jeito de, no fim, o promotor simplesmente dizer: "Foi o grande júri que decidiu, não fomos nós", sabendo que jogar todos esses indícios sobre grande júri, sem orientá-lo, ia provavelmente resultar no não indiciamento. Eu acho que isso é o que o promotor provavelmente queria, desde o início, e ele vai e faz tudo de um modo que lhe dê cobertura política.
Do ponto de vista legal, como avaliariam o desempenho das autoridades ao lidar com esse caso – ou seja, as forças de segurança, os políticos e a promotoria?
KCS: A tendência é desconfiar de todas as autoridades locais. Não posso afirmar, mas creio que há muitas razões para os cidadãos se preocuparem com uma falta de legitimidade na investigação inicial. Muitas das coisas que aconteceram, fazem a comunidade [de Ferguson] perder a confiança. E então a forma como o processo do grande júri se desenrolou, confirmou para muitos essa falta de confiança.
Fiquei decepcionada quando o promotor público perdeu uma enorme oportunidade para liderar esse processo e começar uma cicatrização [da sociedade local]. A declaração que ele fez começava com uma crítica corrosiva à imprensa e á comunidade. Ele mencionou, de fato, que há motivos para essas tensões subjacentes, mas realmente achei que ele podia ter sido mais moderado na sua declaração, sabendo que o mundo inteiro estava observando e que seria uma decisão controversa. Mas deixe-me também acrescentar que a violência ocorrida em Ferguson é inaceitável e desvia da questão real, que é o relacionamento entre a polícia e a comunidade.
DH: O promotor não violou a lei ao se desviar enormemente das práticas habituais. Mas dentro da lei, pode-se às vezes fazer coisas tão incomuns que levantam suspeitas e talvez mudem o resultado. E foi isso o que o promotor fez: sua maneira de conduzir o processo deixa questões muito substanciais em aberto.
Quanto aos demais órgãos de segurança, o que vimos em Ferguson foi uma grande tragédia. Eu não admito e nem ninguém pode admitir arruaças, incêndios provocados de estabelecimentos comerciais e edifícios. Mais o maior erro da polícia, além da morte de Michael Brown, em si, foi não ter feito nada de antemão para estabelecer qualquer relação com a comunidade.
Se a polícia quer ter confiança na sua comunidade, para que ela a apoie e, francamente, entenda o que acontece no trabalho policial, ela deve ter boas relações com os cidadãos que serve. Os bons departamentos de polícia sabem que essas relações são importantes. Quando se fala em relacionamento e policiamento, as pessoas acham que é muito brando. Mas, na verdade, é o que está no cerne de um bom policiamento.
Em Ferguson – assim como em muitas outras comunidades – a polícia não se preocupou em construir esse tipo de conexão, ao ponto de certas relações serem basicamente antagônicas. Por isso, quando a tragédia ocorreu, a polícia de Ferguson não tinha a menor ideia do que fazer, quem chamar, como aplacar a situação.
O caso de Michael Brown e, anteriormente, o de Trayvon Martin, transmitem uma mensagem mais ampla sobre o estado do sistema de Justiça criminal nos EUA?
DH: Sim, transmitem. Eles se tornaram símbolos da maneira como o sistema de Justiça criminal interage e trata os afro-americanos e outras pessoas de cor e minorias. É uma triste realidade que haja, no sistema americano de Justiça criminal, preconceito e situações de aplicação desproporcional e difícil da lei; em diferentes momentos: durante o policiamento, no sistema legal e na aplicação de sentenças.
Os problemas são profundamente arraigados. No entanto, eu não diria que as pessoas no sistema de Justiça ou na polícia sejam necessariamente racistas, decerto não todos, mesmo que uns poucos o sejam. Mas aquilo com que estamos nos confrontando são as formas antigas e intratáveis como o sistema basicamente lida com gente pobre e gente de cor. E estamos confinados a essas formas, devido ao preconceito inconsciente e a outros aspectos do pensamento humano, e vai levar muito tempo até os superarmos.
Para uma pessoa negra, cada incidente como esse não é um incidente isolado: é parte de uma longa história, que remete lá aos tempos da escravidão, quando o poder do Estado e, em particular, o poder policial foi empregado para o que eles consideram a opressão dos negros.
Então, Isso realmente transmite a mensagem de que nós – como tantos outros países – não temos um sistema perfeito. Trabalhamos para melhorá-lo, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.
KCS: Infelizmente [esses casos transmitem uma mensagem maior], sim. Houve também o caso de Eric Gardner, que foi imobilizado com uma chave-de-braço por policiais em Nova York, sob alegação de estar vendendo cigarros não tributados. Ele morreu em consequência do contato com os agentes. O raciocínio era: proteger a propriedade. No caso de Trayvon Martin, a ideia é que havia casas sendo assaltadas; com Eric Gardner, foram cigarros sem imposto. E no caso atual, o policial Darren Wilson respondeu a uma denúncia de que Michael Brown teria roubado umas cigarrilhas de uma loja.
Acho que isso realmente diz muito sobre o sistema de Justiça criminal: que nós estamos dispostos a sacrificar vidas humanas por razões, em muitos casos, insignificantes. E isso lança luz sobre a longa história de tensões entre as minorias e a polícia. Essas comunidades urbanas pobres são policiadas de modo completamente diferente de algumas áreas de classe média alta.
Algumas pessoas vão dizer que é por haver mais criminalidade, e pode ser que haja mesmo. Mas eu acho que é preciso se colocar mais ênfase na parceria com a comunidade para prevenir o crime, ao invés dessas táticas policiais de punho de ferro.