"As polacas" retrata a prostituição de judias no Brasil
12 de dezembro de 2024Em 1964, o cantor e compositor Moreira da Silva gravou o samba Judia rara. "A rosa não se compara / A essa judia rara / Criada no meu país / Rosa de amor sem espinhos / Diz que são meus seus carinhos / E eu sou um homem feliz", diz o primeiro verso. Logo na introdução, Kid Morengueira arrisca algumas palavras em ídiche – uma mistura de hebraico com alemão, língua falada no Leste Europeu: "Ich bin meshugene fur dir" ("Sou louco por você").
A musa inspiradora da canção é Estera Gladkowicer. De origem russa, ela chegou ao Brasil em 1927, aos 20 anos. O compositor conheceu sua musa no Mangue, antiga zona de prostituição da Cidade Nova, no Rio de Janeiro. À época, Moreira da Silva trabalhava como motorista de ambulância no Hospital Municipal Souza Aguiar, no Centro.
Moreira e Estera viveram um romance proibido por 18 anos. De prostituta, ela virou cafetina. De dia, morava num quarto e sala na Rua do Senado. À noite, administrava um bordel no Mangue. Morreu em 1968, aos 61 anos. Causa mortis: ingestão de barbitúricos.
"O apartamento onde Moreira da Silva morava no Catumbi foi comprado com o dinheiro das joias que Estera deixou para ele", relata a historiadora Beatriz Kushnir, doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora do livro Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição – As polacas e suas associações de ajuda mútua (Imago, 1996). Foi lá, no apartamento do Catumbi, que Kushnir entrevistou o sambista para sua dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF).
A sepultura de Estera é uma das 797 do Cemitério Israelita de Inhaúma, o antigo Cemitério das Polacas. Em sua lápide, Moreira da Silva mandou escrever: "Eternas saudades do seu esposo".
"Polaca era o nome dado às mulheres do Leste Europeu que trabalhavam na zona do baixo meretrício", explica Kushnir, em referência aos locais de prostituição frequentados por clientes com pouca grana. O cemitério de Inhaúma foi fundado em 1906 pela Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita (ABFRI), uma sociedade de ajuda mútua que, entre outras providências, criou um fundo para doentes e idosas.
A primeira polaca a ser sepultada lá foi Helena Goldatrin, de nacionalidade austríaca, em 1916. A última, Rebecca Freedman, natural da Polônia, em 1984. Apesar de tombado pela Prefeitura em 2010, o cemitério, administrado pela Sociedade Comunal Israelita, encontra-se abandonado.
"Quis dar voz às mulheres que tiveram suas histórias apagadas"
As primeiras polacas chegaram ao Brasil em 1867. Das 104 imigrantes judias que desembarcaram no Rio de Janeiro, 67 permaneceram na cidade e 37 seguiram para Buenos Aires, na Argentina. O sonho de uma vida melhor trouxe para o país cerca de 2 mil escravas brancas entre 1867 e o fim da década de 1930.
A prostituição de mulheres judias é tema do filme As polacas, que estreia nesta quinta-feira (12/12) nos cinemas brasileiros. Dirigido por João Jardim, a obra é um projeto antigo da produtora Iafa Britz. De origem judaica e descendência polonesa – seus avós maternos vieram de Lódz –, ela ouviu falar de "polacas" pela primeira vez quando tinha 20 anos. Ao tocar no assunto em casa, sentiu um certo desconforto no ar.
"Esse silêncio reflete um tabu que persistiu por muito tempo, tanto na comunidade judaica quanto na sociedade em geral", conta Britz. "A ideia de fazer o filme nasceu do desejo de dar voz às mulheres que tiveram suas histórias apagadas. Quero dar a elas o espaço que tanto merecem."
O filme As polacas se passa em 1917, quando a polonesa Rebeca, interpretada por Valentina Herszage, chega ao Brasil à procura do marido, Saul, e descobre que ele está morto. Mas, poderia ser em 2024. No início das filmagens, ocorreu a invasão da Ucrânia pela Rússia. Não demoraram a surgir as primeiras notícias de ucranianas estupradas por soldados russos. Algum tempo depois, mulheres judias foram feitas reféns e mantidas em cativeiro em Gaza.
"Em uma guerra, o primeiro corpo a ser transformado em moeda de troca e a sofrer violência sexual é o feminino", lamenta Britz. "É uma história que fala, entre outros temas, da dificuldade dos refugiados de reconstruir suas vidas em outro país."
Assim como Britz, Valentina Herszage também é descendente de poloneses. Seus bisavós vieram de lá: Raquel, de Czestochowa; Abraham, de Varsóvia. "Não cheguei a conhecê-los, mas escutei bastante meu avô falar sobre eles", relata a atriz.
Quando descobre que o marido está morto, Rebeca se vê obrigada a se prostituir para sobreviver e para sustentar o filho pequeno, Yosef. "Foi incrível emprestar meu rosto a uma mulher que, em meio a tentativa de uma vida melhor, viveu o horror e, ainda, se uniu a outras mulheres em busca de respeito e dignidade", afirma Herszage.
Religião como alicerce
O roteiro de As polacas é inspirado em dois livros: La polaca (2003), de Myrtha Schalom, e El infierno prometido – Uma prostituta de la Zwi Migdal (2006), de Elsa Drucaroff. O subtítulo do livro de Drucaroff faz alusão à máfia de cafetões judeus, a Zwi Migdal.
"O brasileiro conhece as polacas como mulheres bonitas que viviam da venda do corpo. Não imagina que, através de sua união, conquistaram feitos que muitas comunidades judaicas não conquistaram, como construir o primeiro cemitério israelita do Rio", relata Jacqueline Vargas, coautora do roteiro ao lado de Flávio Araújo. "Mesmo tendo sido rejeitadas pela comunidade por causa da profissão que exerciam, nunca rejeitaram a comunidade. Pelo contrário. A religião foi o alicerce que as manteve unidas", afirma.
O filme As polacas, de João Jardim, não é o primeiro rodado no Brasil sobre a prostituição de mulheres judias. Antes dele, houve dois: Sonhos tropicais (2001), de André Sturm, e Jovens polacas (2019), de Alex Levy-Heller. O primeiro é baseado no romance homônimo de Moacyr Scliar, publicado em 1992, e o segundo, em Jovens polacas – Da miséria na Europa à prostituição no Brasil (Rosa dos tempos, 1993), da historiadora Esther Largman. Antes de escrever Sonhos tropicais, Scliar publicou outro sobre o mesmo tema: O ciclo das águas (1975). "A história precisa ser contada. Não há outra coisa a fazer com os espectros (como Freud bem mostrou) a não ser exorcizá-los", escreveu o autor gaúcho.
Em Jovens polacas, a história é contada a partir da entrevista dada por Mira, interpretada por Jacqueline Laurence, ao repórter Ricardo, interpretado por Emílio Orciollo Netto. Filha de uma polaca, ela passou boa parte da infância vendo a mãe sendo vítima de exploração sexual.
"O desafio foi retratar as polacas de forma poética sem romantizar a vida que tiveram", explica Levy-Heller. "Foram tratadas com repulsa pela comunidade judaica, que pouco fez para ajudá-las. Foram proibidas de entrar nas sinagogas e de ser sepultadas nos cemitérios. Até pouco tempo atrás, a própria comunidade não aceitava bem o que chamava de ‘mancha na história' e, portanto, tinha receio em falar abertamente sobre o assunto."
Poema, música e documentário
Levy-Heller não foi o primeiro cineasta a se interessar pelo livro de Largman. Miguel Falabella tentou adaptá-lo para o cinema, mas, não conseguiu viabilizar a produção. "A maioria das polacas veio enganada para o Brasil", afirma a autora de Jovens polacas. "Sem dinheiro ou documento, elas viravam presas fáceis nas mãos dos cafetões. Para piorar, mal sabiam falar o português."
A historiadora Beatriz Kushnir, porém, defende outra tese: "A visão de que as polacas eram enganadas não se sustenta. Pode até ter acontecido um ou outro caso. Mas, não foi a maioria. Em geral, vinham por vontade própria. Suas famílias eram numerosas e viviam em pobreza no Leste Europeu".
O tema inspirou, além de livros e filmes, documentários, como Aquelas mulheres (2010), de Verena Kael e Matilde Teles, e peças, como Polacas: flores do lodo (2012), de João das Neves. Há menção às polacas até em poema de Vinicius de Moraes, Balada do mangue (1946), e na música de João Bosco, O mestre-sala dos mares (1974), uma parceria com Aldir Blanc em homenagem ao marinheiro João Cândido, o Almirante Negro.