'O coração de Jenin'
8 de maio de 2009Aos 12 anos, Ahmad Khatib foi baleado por soldados israelenses no campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia. Os soldados acharam que a pistola de brinquedo do menino palestino era uma arma real e atiraram. Poucas horas depois, ele morreu em decorrência de graves ferimentos na cabeça e no peito.
Os médicos da Hospital Rambam, em Haifa, confrontaram o pai com uma difícil decisão. Embora seu próprio filho não houvesse sobrevivido, Ismail Khatib tinha a possibilidade de salvar a vida de várias outras crianças através dos órgãos de Ahmad.
A decisão de doar os órgãos de uma criança recém-falecida jamais é simples para um pai ou uma mãe. No caso do palestino Khatib, porém, o dilema era ainda maior. Pois as crianças a serem salvas pelos órgãos de seu filho provinham todas de Israel.
"As crianças não são minhas inimigas"
Para surpresa dos médicos, o palestino promete pensar sobre o assunto. Ele teria 12 horas para se decidir, dizem-lhe no hospital. Khatib delibera com seu irmão mais velho e recebe a bênção do imã de Jenin.
E pede também permissão a Zakaria Zubeidi, chefe dos militantes da Brigada dos Mártires de Al Aqsa e autoridade secular do campo de refugiados de Jenin. Após receber o aval de todos, Khatib libera o corpo do filho, para que coração, pulmões, fígado e rins sejam retirados para transplante.
Isso não impede, contudo, as críticas por parte de vizinhos e conhecidos. Como pôde ele entregar os órgãos de seu filho para o inimigo? "As crianças não são minhas inimigas, elas não têm culpa nenhuma", responde Khatib, quase estóico.
Um coração palestino em Israel
Três anos após esses acontecimentos, o cineasta Marcus Vetter fez uma viagem na companhia de Khatib, para visitar as crianças salvas pelos órgãos de Ahmad. O documentário mostra três de cinco encontros, pois dois dos receptores preferiram manter-se anônimos.
Além da menina drusa Sameh Gadban e do pequeno beduíno Mohammed Kabua, de Neguev, um dos receptores é Menuha Levinson, filha de uma família judaica ultraortodoxa.
No decorrer do filme, pouco antes de os Levinsons receberem a notícia de que foi encontrado o doador de um rim para Menuha, o pai da menina deixa escapar uma observação. Ele preferiria que o órgão fosse de uma criança judia.
Mais tarde ele se desculpará por essas palavras. Mas a visita à família judaica acaba sendo menos calorosa do que as outras duas. Nota-se o constrangimento de todos os presentes.
Parcialidade na apresentação dos fatos
Nesse ponto, seria possível criticar o documentário de Marcus Vetter como unidimensional e parcial. Afinal, o opressivo encontro com a família Levinson, protótipo de judeus ultraconservadores e céticos, é encenado como fatídica cena final de Das Herz von Jenin (O coração de Jenin).
Ismail Khatib é apresentado como mártir, assinalando reiteradamente o quanto os israelenses ficaram surpresos e perplexos com sua atitude. "Isso os perturbou mais do que se eu fosse um terrorista."
Não se menciona, por exemplo, que o pequeno Ahmad foi levado num helicóptero das Forças Armadas israelenses do hospital do acampamento em Jenin até Haifa, pois lá se dispunha dos meios e condições para tentar salvá-lo. Ou que não é raro crianças palestinas serem salvas por doações de órgãos de pacientes judeus.
Ocupação de tempo integral
Porém, por mais que O coração de Jenin seja, ocasionalmente, unilateral ou apelativo, é também tocante ver a esperança e a ternura com que Ismail Khatib olha para as crianças salvas.
"Vejo Ahmad nelas. Nelas todas." Khatib e o diretor Vetter mostram, com seu filme, que o entendimento entre israelenses e palestinos não é necessariamente uma quimera. Um filme que dá esperanças.
E seu trabalho continua mesmo após as filmagens. O documentário foi apresentado em diversos festivais em 2008, tendo recebido vários prêmios. O mecânico profissional Khatib trabalha agora pelas crianças e jovens de Jenin. Graças a doações, ele criou um centro infanto-juvenil e iniciou um outro projeto com Marcus Vetter.
Cultura em vez de ódio
A iniciativa Cinema Jenin conta com o apoio do Ministério alemão das Relações Exteriores, do Instituto Goethe e de diversas produtoras de cinema, entre outros parceiros. A meta é reativar o maior cinema da Cisjordânia, fechado após a irrupção da primeira intifada, em 1987.
Desde então, o edifício com capacidade para até 300 espectadores está em ruínas. Agora, com a ajuda dos jovens da região, a sala está sendo reformada e deverá ser reinaugurada no final de 2009, com um festival de cinema.
"Queremos proporcionar aos jovens daqui novas oportunidades de ocupação e cultura que não tenham a ver com violência ou ódio", anunciam Khatib e Vetter.
Autor: Rasha Khayat
Revisão: Simone Lopes