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"Fim do 'auto de resistência' é mudança cosmética"

Jean-Philip Struck10 de janeiro de 2016

Termo era usado por policiais que alegavam estar se defendendo ao matar um suspeito. Especialistas dizem que mudança não é significativa e que ela não muda "cultura de matança" nas corporações.

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Foto: picture-alliance/dpa/A. Lacerda

Uma resolução publicada no Diário Oficial pelos comandos da Polícia Federal e das polícias civis no início desta semana aboliu os termos "auto de resistência" e "resistência seguida de morte" dos boletins de ocorrência e inquéritos policiais.

Os termos eram usados por policiais que matavam suspeitos alegando estarem se defendendo e, mesmo representando homicídios, costumam ser classificados separadamente nas estatísticas. A mudança da nomenclatura era uma antiga reivindicação de grupos de direitos humanos, que argumentavam que o uso das expressões protegia policiais que cometiam propositalmente homicídios.

Agora, os chefes de órgãos policiais terão que registrar as ocorrências como "lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial" ou "homicídio decorrente de oposição à intervenção policial", dependendo do caso.

Além disso, a resolução também reforça que, nesses casos, um delegado de polícia deverá verificar se um policial que matou fez uso de forma "moderada" dos meios necessários e disponíveis para se defender. Um inquérito policial prioritário deverá ser aberto para investigar se esse foi o caso. O Ministério Público deverá ser comunicado sobre a ocorrência, independentemente de qualquer procedimento correcional interno que venha a ser instaurado pelas polícias.

Os procedimentos que regulamentaram os antigos "autos de resistência" apareceram pela primeira vez durante a ditadura militar (1964-1985) no antigo Estado da Guanabara e logo foram imitados por outras policias do país.

Antes mesmo da resolução do Diário Oficial, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo já havia abolido as expressões, que foram substituídas por "morte decorrente de intervenção policial".

Críticas

Apesar das mudanças, nem todas as organizações de direitos humanos que pediam modificações na nomenclatura ficaram satisfeitas. A Anistia Internacional afirma que as novas expressões ainda mantêm o pressuposto de que qualquer vítima da polícia estaria atuando em "oposição" e "resistência" às operações policiais.

A mesma avaliação é feita pela ONG Conectas. "A resolução representa um avanço para dar fim a um procedimento padrão das policias que se configura em verdadeira ‘pena de morte' nas periferias urbanas", afirma Vivian Calderoni, advogada do programa Justiça da Conectas. "Porém, vemos como preocupante que, em seu vocabulário, a resolução continue a perpetrar a mentalidade do Estado de tratar o cidadão como inimigo. Isso pode manter a lógica de acobertamento das práticas de execução". disse.

Ainda segundo Calderoni, a resolução poderia também ter avançado mais ao prever o isolamento adequado da cena do crime. De acordo com a Conectas, as execuções policiais só serão freadas com a implementação de outras medidas, como a independência dos órgãos de perícia (incluindo perícias médico-legais autônomas), o controle da polícia pelo Ministério Público e a reforma do modelo militarizado da polícia.

Para Julita Leumbruger, socióloga e ex-diretora do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, as mudanças são "puramente cosméticas". "Com ou sem essa expressão, o Ministério Público e as polícias sempre tiveram a obrigação de investigar essas mortes, mas nada é feito", afirma.

O delegado Orlando Zaccone, da Polícia Civil do Rio de Janeiro e autor da tese de doutorado Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro, também afirma que as mudanças não são significativas.

"Não há o que celebrar quando se chama urubu de meu louro", afirma. Segundo Zaccone, apesar da mudança de nomenclatura e de novos procedimentos, a "estrutura de matança", em que policiais, delegados, promotores e juízes agem em conjunto para dar legitimidade às mortes "ainda continua igual".

"Um dos problemas das investigações dessas mortes é que elas não apuram como ocorreu o homicídio. Se concentram na biografia da vítima, se ela era um trabalhador ou um traficante, como se isso fosse um fator para determinar se a pessoa tem direito à vida. O Ministério Público ainda vai continuar a pedir o arquivamento sistemático de processos, afirmando que o morto era um bandido e vinha de tal favela e os juízes vão deferir, sem provocar qualquer punição. Essa, infelizmente, tem sido uma política de Estado no Brasil, e isso não vai mudar com essa medida. Basta ver que, em São Paulo, que já tinha abolido o 'auto de resistência', os números da matança só aumentam. Temos é que mudar a imagem de que bandido bom é bandido morto", afirma.

Mortes

Segundo dados da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 3.022 pessoas foram mortas por policiais no Brasil em 2014 – oito por dia. O número representa um aumento de 37,2% em relação a 2013. Entre 2008 e 2013 foram contabilizadas 11.197 vítimas de confrontos policiais em todo o Brasil. Segundo a ONG Conectas, esse número é maior do que o de pessoas mortas em 30 anos por todas as polícias dos Estados Unidos, país com população bem maior que a brasileira.

Ainda não existem números que contemplem 2015, mas levantamentos parciais de algumas polícias do país mostram que o número de mortes continua em alta, apesar de quedas registradas em alguns estados.

Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública contabilizou o registro de 532 mortes por intervenção de PMs em serviço entre janeiro e novembro de 2015.

Já no Rio de Janeiro, a polícia contabilizou, só até novembro, 615 mortes. No mesmo período do ano anterior, foram 584. Em 2007, os autos de resistência atingiram seu ápice. Naquele ano foram contabilizados 1.330 casos no Estado do Rio, sendo 902 somente na capital.