Fluxo de venezuelanos leva Roraima a estado de emergência
12 de dezembro de 2016Na fila do posto de saúde de Pacaraima, cidade brasileira na fronteira com a Venezuela, uma paciente explica o kit necessário para um parto do lado de lá: "tem que levar a sua própria seringa, gaze, algodão, linha para costurar, máscara, tudo. Não tem anestesista, não tem soro", conta a venezuelana Juliana Diaz, de 26 anos, grávida de 8 meses. "Por isso fico mais tranquila de parir em Boa Vista", afirma.
A chegada de pacientes como Diaz, vindos de diversas cidades da Venezuela, a postos de saúde e hospitais da região é cada vez mais recorrente. De acordo com a Defesa Civil de Roraima, foram quase 4.500 atendimentos de venezuelanos na rede estadual de saúde em 2016. "Começou a aumentar em 2015 e, agora, 90% dos nossos pacientes são da Venezuela", diz a diretora do posto municipal de saúde de Pacaraima, Helena Teixeira.
O governo estadual decretou, em 7 de dezembro, situação de emergência em Saúde Pública nos municípios de Boa Vista e Pacaraima. A administração estima que 30 mil venezuelanos tenham entrado e permanecido no estado desde 2015.
O crescimento desse fluxo migratório impôs uma série de desafios ao estado, que passa por uma grave crise financeira. Em agosto e setembro, o governo de Roraima atrasou salários de servidores e tem tido dificuldade de pagar fornecedores em dia. A administração afirmou, em novembro, não possuir dinheiro em caixa para o 13º salário no fim do ano.
"O estado está com dificuldade de pagar o funcionalismo. E agora estamos com uma sobrecarga nos hospitais e maternidades", afirma o comandante geral do Corpo de Bombeiros e coordenador estadual da Defesa Civil, Edvaldo Amaral.
A alta procura no posto de saúde já impacta a oferta de medicamentos, segundo a diretora. "Tá faltando tudo: antigripal, cremes, pomadas, anti-inflamatório, antifúngico, antialérgico. Muitos vêm de perto da fronteira, mas outros vêm de longe buscando remédio para câncer e HIV", diz Teixeira.
Além de provocar um aumento no número de pacientes, o fluxo migratório alertou as autoridades para a entrada de doenças – num estado que não tem condições financeiras de lidar com a questão. De acordo com a Defesa Civil de Roraima, em 2016, houve um aumento de 274% do número de casos de malária diagnosticados em venezuelanos dentro do estado, em comparação com o ano anterior. Em 2015, foram 503 e, neste ano, 1.378.
"Muitos deles estão chegando com doenças que já foram praticamente erradicadas como a difteria e a febre amarela. E muitos têm HIV, sífilis e tuberculose e não estão sendo tratados", afirma Amaral.
Apreocupação é ainda maior com centenas de indígenas venezuelanos que dormem em feiras, terrenos baldios e terminais rodoviários de Boa Vista e Pacaraima, em condições extremamente precárias de higiene e saúde.
"Tem que decretar situação de emergência, porque o risco é grande", diz a irmã Telma Lage, advogada e coordenadora do Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima. Ela destaca, no entanto, que há uma tentativa de culpar os venezuelanos por todos as mazelas do estado.
"A maternidade não dá conta de atender todo mundo e o HGR [Hospital Geral de Roraima] sempre teve problema, e agora a culpa é dos imigrantes?", questiona. O médico venezuelano Gilberto Flores, de 29 anos, concorda. Ele trabalha no posto de saúde em Pacaraima, pelo Mais Médicos.
"É verdade que tem um risco da entrada de doenças, mas isso também é um pouco de preconceito. Aqui eles vêm mais procurando remédios para doenças que não são transmissíveis", conta.
Criminalidade
Além da saúde, segundo relatório da Defesa Civil, houve ainda um crescimento na criminalidade entre 2015 e 2016. Na capital, as ocorrências envolvendo venezuelanos triplicaram, chegando a 113 em 2016. Já em Pacaraima, os crimes passaram de 21 para 107.
No entanto, de acordo com o próprio relatório, os venezuelanos são vítimas na maioria dos crimes. Dos 113 casos ocorridos em Boa Vista, os venezuelanos são infratores em apenas 41 ocorrências – nas outras 72, são vítimas. Em Pacaraima, o cenário é o mesmo: dos 107 casos, os venezuelanos foram vítimas em 68 e infratores em 39.
Na fronteira, onde muitos venezuelanos entram diariamente para comprar comida, moradores associam a presença de estrangeiros à criminalidade. Segundo uma funcionaria da Policia Civil da cidade, as ocorrências de fato cresceram, mas a maioria é furto de alimentos.
"Todo dia agora tem furto, mas eles roubam para comer. E não são só os venezuelanos não, tem brasileiro envolvido também", disse. A funcionária afirma que "a sociedade ficou chocada" com três homicídios na cidade.
"Um foi um brasileiro que matou um venezuelano. E no outro caso, dois venezuelanos foram esfaqueados por outros venezuelanos na rua principal, por uma briga", conta.
Atuação do Estado
Segundo o professor da UFRR Gustavo Simões, a atuação do governo federal na questão migratória em Roraima tem sido muito restrita – faria apenas a avaliação dos pedidos de refúgio e a fiscalização da entrada de venezuelanos. Já para a irmã Telma Lage, o governo federal tem sido omisso.
O governo do estado também demanda mais apoio da União. "A gente está com muita dificuldade de resolver essa questão, precisamos de recursos do governo federal para saúde, educação e segurança", disse Amaral, que também é coordenador do Gabinete Integrado de Gestão Migratória, criado em outubro pelo governo do estado de forma emergencial. A administração afirmou que "não houve, até o presente momento, ajuda financeira do governo federal".
O Ministério da Justiça disse, por meio de nota, que "iniciou tratativas com o Governo do Estado de Roraima para chegar, conjuntamente, a uma solução duradoura nos municípios mais afetados pelo movimento migratório".
Por outro lado, as ações do governo de Roraima também são duramente criticadas. "Por ser um estado pobre e com pouca infraestrutura, em um período de crise e de corte de gastos, o estado simplesmente lavou as mãos e passou a responsabilidade para o governo federal", afirma Simões, que considera que o Gabinete Integrado não teve "nenhum resultado imediato".
O governo do estado afirma que abriu, no final de novembro, um centro móvel de referência ao imigrante, com atendimento médico e alimentação. A administração diz, no entanto, que não pretende estabelecer um local de acolhida, porque não "há condições financeiras".