G20: fala de Lula não deve provocar implosão
22 de fevereiro de 2024Na abertura da reunião dos ministros de Relações Exteriores no Rio de Janeiro, o Brasil deixou claro que sua presidência do G20, grupo que reúne as economias mais poderosas do mundo, será de enfrentamento.
Em seu discurso de abertura nesta quarta-feira (21/02), o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, criticou a "paralisia" de órgãos como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que não estaria apto para lidar com os desafios atuais.
"Esse estado de inação implica diretamente perdas de vidas inocentes", afirmou Vieira, na fala inaugural feita em português. "O Brasil não aceita um mundo em que as diferenças são resolvidas pelo uso da força militar", complementou na sequência, citando em particular os conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza.
Sombra da crise diplomática com Israel
Em meio à crise diplomática com Israel, repercute entre os diplomatas e jornalistas presentes na reunião do G20 a declaração feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último final de semana, quando comparou as ações militares de Israel em Gaza ao Holocausto, durante a Cúpula da União Africana na Etiópia.
Em sua chegada ao Brasil nesta quarta-feira, a ministra alemã Annalena Baerbock foi breve ao responder à pergunta de um jornalista alemão sobre a fala do líder brasileiro. "O Holocausto não é comparável a nada", disse, encerrando imediatamente a conversa.
Ao fim do primeiro dia de encontro, questionado por jornalistas brasileiros, o ministro norueguês, Espen Barth Eide, seguiu a mesma linha e preferiu não comentar a fala de Lula. Ele ressaltou, porém, que o Holocausto é um evento sem paralelo na história, que não deve ser comparado. "Foi um plano para exterminar judeus", disse. Eide também afirmou que as acusações de genocídio estão sendo investigadas por organismos internacionais e, se forem comprovadas, serão punidas, a exemplo do que ensinou a Segunda Guerra Mundial.
Fala contraditória ao discurso
O posicionamento de Lula às vésperas do encontro de ministros de Relações Exteriores pegou de surpresa pesquisadores que acompanham a agenda do G20. Para os especialistas ouvidos pela DW, a fala do presidente joga contra a ambição do país em se tornar um mediador de peso nos conflitos internacionais.
"Infelizmente, isso atiça a polarização doméstica e internacional. E esta fala vai ser usada por todos e de todas as formas. Para o Itamaraty, o ministério de Relações Exteriores, o grupo que têm trabalhado numa agenda propositiva, esta discussão atravessa e atrapalha", comenta Ana Elisa Saggioro Garcia, pesquisadora associada do Brics Policy Center, que atua no comitê organizador do grupo de think tanks do G20.
Ainda assim, a crise diplomática entre Brasil e Israel – que não faz parte do grupo – não deve causar uma ruptura interna, como ocorreu em 2022. Naquele ano, o ataque russo à Ucrânia quase inviabilizou a reunião dos líderes, já que muitos se opunham à presença do presidente russo, Vladimir Putin – o que deu trabalho para a Indonésia, então à frente da presidência rotativa.
"Havia muita tensão no ar e a declaração final foi muito genérica. Na Índia, ano passado, isso já mudou. Neste ano, até por conta do surgimento de um novo conflito com impacto humanitário muito grave, o cenário será diferente, sem risco de implosão", analisa Garcia, que também é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Em busca das reformas
A prioridade no primeiro dia de reunião foi a discussão das reformas da governança global, como o Conselho de Segurança da ONU, afirmou o anfitrião Mauro Vieira. A entrada para o clube seleto é um pleito antigo do Brasil, que busca há décadas uma participação nos rumos do cenário internacional e quer dar mais protagonismo ao Sul Global.
"O país deu passos atrás nesta presença global e agora Lula busca uma retomada. Mas hoje o mundo parece mais refratário a uma tentativa de mudança com tantos conflitos em andamento e uma situação econômica mundial ainda delicada no pós-pandemia. Não há muito ímpeto para reformas", acredita Leandro Consentino, professor do Programa Avançado em Gestão Pública do Insper.
Criado em 2009 num contexto de crise econômica mundial para aperfeiçoar a governança financeira, o G20 passou de um grupo mais técnico a ator político. Aos poucos, a agenda se expandiu até entrar em pautas mais diversas.
"O G20 passou por esta transformação sem perder a relevância. Ele expandiu sua agenda para todos os temas, incluindo a questão das mudanças climáticas. Mas é muito difícil a presidência do Brasil conseguir chegar ao Conselho de Segurança. Todas as agendas de reforma são difíceis, mas esta é a mais difícil", pontua Garcia.
Suspense até novembro
Apesar dos holofotes em Gaza, a guerra na Ucrânia segue em evidência. O ministro russo Sergey Lavrov foi um dos colegas de pasta que acompanhou o discurso de Viera em volta da mesa de reuniões. Mais cedo, ele teve um encontro bilateral com o brasileiro – e foi o único a chegar ao local do evento pela mesma entrada dos jornalistas.
A imprensa russa acompanha em peso a programação no Rio de Janeiro. Segundo informações obtidas pela DW, os russos formam a segunda maior delegação de jornalistas, com 31 das 416 credenciais. Os brasileiros são os primeiros, com 223.
"Esperamos que Lavrov não barre as discussões sobre as agressões que a Ucrânia tem vivido. Temos esperança de que Lula convide [Volodimir] Zelenski [presidente ucraniano] para a cúpula final, em novembro", disse à DW Mykola Volkivskyi, único jornalista ucraniano presente na reunião.
Diante da crescente tensão internacional, a presidência brasileira convida os membros ao diálogo e diz rejeitar o uso da força, da espionagem, da intimidação e da propaganda nas redes sociais.
Para Consentino, do Insper, a candidatura a este papel de mediador fica ameaçada com a declaração do presidente.
"Se o país quer se credenciar como um porta-voz que vai buscar relações mais tranquilas, falas como a de Lula dificultam esse objetivo. Ainda mais porque ela tem sido bastante explorada por Benjamin Netanyahu", afirma.
Para o pesquisador, seria mais coerente o país dar destaque às discussões em torno da questão ambiental e da transição energética, por exemplo. "Se a presidência fosse por este caminho de transição verde seria uma via segura de protagonismo brasileiro. O país ainda não tem status para mediar conflitos como guerra na Ucrânia ou no Oriente Médio", analisa Consentino.
Embora tente se apresentar como um espaço de consenso, o G20 não deixa de refletir as tensões internacionais. "É um dos poucos 'clubes' que reúnem atores do Norte, Sul, Leste e Oeste geopoliticamente falando. Não é tão seleto como o G7, mas não tão grande como a Assembleia da ONU. Por isso, as maiores tensões sempre estarão lá reproduzidas", diz Garcia, do Brics Policy Center.
Até novembro, quando os líderes globais se encontram no Brasil para a cúpula final da presidência brasileira, o mundo pode estar um pouco diferente do retrato atual. Isso, também, porque as eleições nos Estados Unidos podem reeleger no início de novembro Joe Biden ou trazer de volta Donald Trump.