"Gilmar Mendes perdeu totalmente o equilíbrio"
22 de março de 2016Em 1992, Marcello Lavenère, então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entregou à Câmara dos Deputados o pedido que resultaria na abertura do processo de impeachment que acabaria precipitando o afastamento do presidente Fernando Collor. Vinte e quatro anos depois, Lavenère não vê no caso de Dilma Rousseff os mesmos elementos que embasaram a queda de Collor.
Na última sexta-feira, o advogado, que mantém uma posição crítica em relação a uma eventual queda do governo, foi um dos dois votos vencidos na última reunião do Conselho Federal da OAB, que decidiu apoiar por uma maioria de 26 votos a abertura do processo de impeachment na Câmara.
Em entrevista à DW, Lavenère, hoje com 77 anos, criticou a forma como o processo atual foi iniciado e também afirmou que a Operação Lava Jato tem cometido abusos. Também sobraram críticas ao trabalho da imprensa brasileira e da oposição. Ligado a movimentos sociais, Lavenère esteve no ato de intelectuais em defesa do governo que ocorreu no dia 16 de março, no teatro Tuca, em São Paulo.
DW Brasil: Ao longo do ano passado, o senhor disse que o cenário atual difere muito daquele de 1992. O senhor continua acreditando que faltam elementos que justifiquem a abertura de um processo de impeachment contra Dilma?
Marcello Lavenère: A minha convicção é a de que não existem nesse pedido que está tramitando na Câmara fundamentos consistentes para justificar a abertura do processo. Os dois fundamentos que estão ali são as pedaladas fiscais – uma irregularidade contábil – e um parecer do TCU recomendando a rejeição das contas. Minha opinião pessoal, que manifestei no Conselho da OAB, mas que não foi a linha da maioria, é no sentido de que esses dois fatos não estão entre os crimes previstos na Constituição que podem levar a uma abertura de processo.
Alguns deputados pretendem incluir no pedido a delação do senador Delcídio do Amaral, que acusa Dilma de participação nos desvios da Petrobras e em tentativas de acobertamento. Isso não reforçaria o pedido?
O próprio ministro do STF Teori Zavascki, que homologou essa delação, declarou que esse tipo de instrumento não é prova. A delação é apenas um roteiro para que se apure o que foi dito. Se um cidadão diz que alguém cometeu um crime, não é porque isso está na delação que se aceita que alguém cometeu aquele crime. Isso só implica que a acusação deve ser apurada para comprovar a autoria do crime. Isso ficou muito claro em discussões na OAB: a delação não é prova, não é um fato consumado. Ela dá uma pista que ajuda órgãos de investigação a verificar se o que foi citado é verdadeiro ou não.
O senhor foi um dos dois votos vencidos no Conselho Federal da OAB, que na última sexta-feira decidiu apoiar o processo de impeachment. Qual é a sua opinião sobre a decisão da entidade?
Houve um entendimento um pouco distorcido entre aquilo que foi decidido pela OAB e aquilo que apareceu na grande imprensa. O que aconteceu é que o Conselho Federal apontou que as denúncias contra a presidente devem ser investigadas. Foi decidido que deveria haver um processo para apurar a veracidade. A forma que a coisa apareceu na imprensa dá a entender que a OAB se manifestou a favor de que a presidente seja afastada porque já entende que existem provas suficientes nesse sentido. A comprovação da veracidade das acusações é uma tarefa da comissão da Câmara, que vai ouvir a defesa, as acusações e analisar as provas.
Mas existe na OAB uma tendência favorável à saída de Dilma na Presidência?
A votação de sexta-feira, com seu placar de 26 a 2, pode dar a impressão de que essa posição é largamente majoritária. Mas existem advogados que estão se mobilizando em todos os Estados contra a abertura do processo. Eu não posso dizer se a maioria dos advogados favorece o afastamento da presidente pelo processo de impeachment ou se maioria quer apenas uma apuração de tudo isso. Se a Câmara e o Senado derem mesmo prosseguimento ao processo, aí o Conselho Federal e os advogados em sua universalidade devem se manifestar se são mesmo favoráveis ao afastamento da presidente.
O senhor acredita que o pedido de impeachment contra Dilma pode prosperar?
Acho que há uma grande pressão dos meios de comunicação brasileiros, que têm demonstrando muita simpatia pelas teses da oposição. Os meios de comunicação são muito monopolizados. Essa pressão quase de partido político – e de outros atores – faz com que exista no Congresso uma forte voz pelo impeachment. As provas são inconsistentes, mas ainda temos que aguardar para saber se mesmo aqueles que estão pedindo o impeachment vão continuar nessa posição quando considerarem essas provas concretamente. É uma coisa que vai depender do jogo político, das paixões e do entrechoque entre os vários interesses político-partidários.
Quais são as diferenças entre o andamento desse processo e o que ocorreu em 1992?
Existe uma diferença fundamental. Em 1992, quando apareceu a possibilidade do impeachment,a população foi às ruas para apoiar esse processo. Só que não houve uma manifestação sequer, seja em cidades pequenas e grandes, em apoio ao presidente. Não havia segmentos da opinião pública que se reunissem para dizer "o presidente precisa ficar" ou que o processo não se justificava.
Hoje, é diferente. Nós temos um país dividido. Temos de um lado os segmentos mais abastados da sociedade, que são majoritariamente contrários ao governo da Dilma e ao projeto de combate à desigualdade. Do outro, temos categorias menos abastadas, junto com intelectuais e juristas, que apontam que essa pressão contra a presidente é político-partidária, coisa de quem perdeu a eleição e não se conforma com o resultado. O futuro vai depender muito do entrechoque desses dois grupos.
E como o senhor avalia o desempenho da imprensa no andamento do processo atual?
Em 1992, eu e os outros autores do pedido de impeachment, começamos o movimento sem nenhuma cobertura privilegiada da imprensa, muito pelo contrário. A grande imprensa no Brasil é representada por um grande conglomerado que é praticamente hegemônico, a Rede Globo – que já foi denunciada muitas vezes pela sua posição partidária, retrógrada e golpista. Ela tinha muita simpatia pelo presidente Collor. Ela resistia até mesmo em noticiar passeatas.
Ela só mudou quando grandes entidades tomaram posição, e as ruas mostraram a sua força. É diferente agora. Infelizmente, esse monopólio está promovendo uma verdadeira violação das regras da ética jornalística, substituindo o papel da oposição, e fazendo campanha partidária contra o governo. Hoje, a imprensa não está apenas precipitando os acontecimentos, ela está promovendo a intolerância e criando um acirramento entre os cidadãos que é muito perigoso.
Mas as acusações contra a presidente e contra Lula surgiram em investigações. O senhor não vê fundamento nelas?
Contra a presidente Dilma não há uma só acusação de ilicitude, de ilegalidade, de improbidade, de propina. Os próprios adversários afirmam que ela é uma mulher honesta, apesar de não gostarem da forma como ela governa. Quanto a Lula, que é o maior líder popular brasileiro, existe uma tentativa de desqualificar a sua liderança e de impedir que ele seja candidato à Presidência em 2018.
As acusações envolvendo o triplex e o sítio não são um motivo razoável para a perseguição que esse cidadão está sofrendo. Além de não estarem comprovados, os dois fatos são absolutamente irrelevantes. "Ah, mas ele comprou um sítio". Ora, ele pode ter comprado um sítio. Isso não constitui nenhum crime, ainda que ele não tenha colocado esse sítio em seu nome por algum motivo. Não existem provas de que ele comprou esse sítio por meio de troca de favores ou com dinheiro de propina. O mesmo acontece com o triplex. É como se ele não pudesse estar interessado em comprar um apartamento.
Como o senhor avalia o desempenho da Operação Lava Jato até agora?
Ninguém no Brasil – e mesmo dentro do governo – é contra a Operação Lava Jato. As pessoas que criticam aspectos da operação não são partidárias da corrupção. As críticas, que são cada vez mais fortes, são contra os abusos que a operação, em sua missão quase messiânica, tem cometido.
São fatos muito graves, como os grampos ilegalmente constituídos contra advogados. Já a condução coercitiva do Lula foi desnecessária. Ele não havia se recusado a depor. A coleta de delações, por sua vez, é feita com pessoas presas. A delação de uma pessoa presa é uma prova obtida mediante coação. Também existe a espetacularização, os vazamentos, a convocação da imprensa para assistir determinados atos – como a condução do Lula. Tudo isso tem sido considerado por setores isentos da opinião pública como sendo excessos.
E como o senhor avalia especificamente a conduta do juiz Sérgio Moro?
Moro agora é a estrela, um ídolo, quase um deus. Basta ver a imprensa o que faz, concedendo a cada semana um prêmio, "personalidade do ano", "juiz do ano", "o salvador da pátria". Com isso, Moro tem sido levado a ir além daquilo que seriam seus atos no estrito cumprimento do dever de magistrado. Ao se exceder, o juiz Moro se ilegitima para continuar fazendo essa investigação. Há muita coisa inaceitável, como a divulgação do grampo envolvendo a presidente. A Constituição proíbe isso, mas o juiz, mesmo sabendo que o grampo havia atingido a presidente, decidiu divulgar o conteúdo.
Mas descontando a discussão sobre a divulgação dos grampos, o senhor não vê nas conversas elementos que comprovem que a presidente agiu para proteger Lula e obstruir as investigações?
Toda a indignação da oposição é o medo, é o receio de que a vinda do presidente Lula possa dar força para um governo fragilizado neste momento. O ex-presidente é considerado um líder muito habilidoso, então há uma tentativa de impedir que ele possa exercer a função de ministro. Nesse sentido, se tomou uma simples declaração da presidente que encaminhava um papel como um comportamento absolutamente pecaminoso e grave para justificar toda essa onda de perseguição que está ocorrendo. Não é só a minha opinião. Até o juiz Moro declarou em seu despacho que não via nenhum fato delituoso no grampo. Estão procurando chifre na cabeça de cavalo.
E como senhor avalia o desempenho do STF nessa crise?
No STF temos ministros que exercem sua profissão na maior legalidade. Menos um: Gilmar Mendes. Este ministro perdeu completamente o equilíbrio e tem uma posição política explícita. Ele já manifestou publicamente o seu ódio ao PT e outras entidades, como a própria OAB. Esse ministro contamina e prejudica a ideia de Suprema Corte. Eu tenho certeza que o Supremo, que não é partidário e tem se comportado da maneira mais independente e correta possível, vai em seu devido tempo não somente reprimir o comportamento do ministro Mendes, mas também todos os abusos cometidos contra o devido processo legal durante a Operação Lava Jato.