Hamburger Bahnhof: templo da arte contemporânea em Berlim
1 de maio de 2013O prédio, cuja fachada é marcada pela instalação de luz em duas cores do artista norte-americano Dan Flavin, já se transformou em um dos símbolos de Berlim. Morto em 1996, ano da reabertura do museu, Flavin não presenciou como suas luzes azuis e verdes se tornaram uma das referências da paisagem urbana na capital alemã.
A sede do Hamburger Bahnhof (literalmente Estação Ferroviária de Hamburgo), que tem projeto arquitetônico de Josef Paul Kleihues, é uma antiga estação de trem, construída em meados do século 19. Em 1919, o espaço passou a ser uma dependência da Galeria Nacional intitulada "Museu do Presente", criado para abrigar o que na época se chamou de "a arte dos vivos", até ser fechado pelos nazistas em 1937.
Essa imponente arquitetura, ampliada com um "anexo leste", foi transformada em 1996, por ocasião da reabertura do espaço, em um dos museus de arte contemporânea mais conceituados do mundo. Em 2004, o Hamburger Bahnhof ganhou mais 6 mil metros quadrados, passando a ocupar sua área atual de 13 mil metros quadrados destinados somente a exposições.
A casa abriga diversas coleções, com mostras regulares do acervo permanente, bem como exposições temporárias, debates e até, como atualmente, uma restauração aberta de obra – no caso específico de Richtkräfte für eine Gesellschaft (Forças propulsoras de uma sociedade, 1974), do alemão Joseph Beuys.
Desde a reinauguração do museu, na década de 1990, a direção do Hamburger Bahnhof procura não perder de vista a referência à "arte dos vivos" mencionada no tempo de sua criação em 1919. O acervo da casa é totalmente dedicado a obras criadas a partir da década de 1960. Entre estas estão diversos trabalhos de Joseph Beuys, Andy Warhol, Robert Rauschenberg e Cy Twombly, pertencentes à Coleção Marx – uma referência ao colecionador berlinense Erich Marx.
Até o próximo 30 de junho, por exemplo, o visitante do Hamburger Bahnhof pode assistir à documentação em filme da série 9 Evenings: Theatre & Engineering (9 Noites: Teatro & Engenharia), criada por Rauschenberg em 1966 e que viria a ser posteriormente considerada um dos trabalhos precursores da artemídia. A obra foi o primeiro evento de uma série de projetos que se tornariam conhecidos pela sigla E.A.T. (Experiments in Art and Technology/Experimentos em Arte e Tecnologia).
Discípulos dos Becher
A Coleção Marx tem ainda entre seus destaques obras de Anselm Kiefer, entre elas Mao (1973), que se transformou num dos "ícones" do Hamburger Bahnhof. Outro pilar da coleção é composto por obras de artistas norte-americanos como o próprio Dan Flavin, que assina a instalação da fachada, Donald Judd, Roy Lichtenstein e Bruce Nauman.
No anexo leste do museu, estão expostas, ainda como parte dessa coleção, fotografias de grande formato de artistas ligados ao que ficou conhecido como "Escola dos Becher", em referência ao casal Hilla e Bernd Becher. Ali, o visitante do Museu tem acesso às reproduções de igrejas e museus do fotógrafo Thomas Struth, frente a imagens digitalmente manipuladas de Andreas Gursky de uma biblioteca ou da bolsa de valores de Cingapura, por exemplo.
Arte Povera e Minimal Art
Há mais de 10 anos o Hamburger Bahnhof conta também em seu acervo com a Coleção Marzona, recebida do colecionador e editor teuto-italiano Egidio Marzona e dedicada sobretudo à Arte Conceitual de 1965 a 1978, à Minimal Art e à Arte Povera.
Com mais de 600 obras, a coleção tem um extenso material de arquivo, que permanece guardado na Biblioteca do Hamburger Bahnhof e é aberto para consulta pública: são milhares de livros de arte, revistas, cartazes, convites de exposições, vinis, filmes, fotografias e cartas.
Para além dos formatos "tradicionais" da arte, o Hamburger Bahnhof dá atenção especial ao que a direção da casa chama de "interdisciplinaridade da arte contemporânea". Um conceito cuja compreensão curatorial fica visível nos "espaços de artistas" como John Cage, Bill Viola, Rebecca Horn e Marcel Broodthaers.
Entre as obras audiovisuais que fazem parte da Coleção Galeria Nacional destacam-se em especial o Arquivo de Mídia Joseph Beuys e a coleção de videoarte dos anos 1970, doada ao Museu por Mike Steiner. A Coleção Galeria Nacional contém trabalhos em fotografia e multimídia, com obras de videoarte de nomes como Peter Campus, Gary Hill, Marcel Odenbach, Nam June Paik e Bill Viola. E trabalhos de arte sonora do casal Janet Cardiff e George Bures Miller, entre outros.
A Coleção Flick
Em fevereiro de 2008, o colecionador Friedrich Christian Flick doou ao Museu Hamburger Bahnhof 166 obras de arte contemporânea, abarcando os últimos 40 anos até aquele momento e contendo trabalhos importantes de artistas como Marcel Broodthaers, John Cage, Stan Douglas, Martin Kippenberger, Bruce Nauman e Wolfgang Tillmans, entre outros.
Com destaque para um acervo específico do norte-americano Bruce Nauman, a Coleção Flick inclui obras de arte conceitual, minimal art, do movimento Fluxus e do estruturalismo poético dos anos 1960. Da Coleção fazem parte trabalhos de Nam June Paik, Dieter Roth e Dan Graham, além de obras de uma geração posterior, com nomes como Stan Douglas, Isa Genzken, Pippilotti Rist e Anri Sala.
O empresário Flick emprestou ainda ao Hamburger Bahnhof um acervo com mais de 1500 obras de artistas, sobretudo europeus e norte-americanos, que vêm sendo expostas em mostras regulares de temáticas distintas. O contrato de empréstimo deste acervo foi selado em 2004 por um período de sete anos e prorrogado recentemente até o ano de 2021.
Conduta frente a passado nazista
A discussão em torno da interseção entre a Família Flick e a fundação que administra os museus berlinenses ultrapassou, contudo, as fronteiras do universo da arte. Nos preâmbulos da negociação entre as duas partes para definir o empréstimo das obras vieram à tona as manchas do passado do avô de Friedrich Christian: um magnata da indústria armamentista condenado no pós-guerra pelo Tribunal de Nurembergue por exploração de trabalho escravo, saque de territórios ocupados pelos nazistas e ligação com a SS.
E o pior: a negação da família em assumir quaisquer responsabilidades por isso e a contribuir para os fundos de indenização dos sobreviventes dos campos de concentração e de trabalhos forçados.
Em 2004, o jornalista Peter Kessen expôs no livro Von der Kunst des Erbens. Die Flick-Collection und die Berliner Republik (Da arte de herdar. A Coleção Flick e a República de Berlim) detalhadamente os meandros da família Flick, cujo patriarca, embora condenado por crimes de guerra cometidos sob o regime nazista, se negava a contribuir para indenizar as vítimas.
E Kessen foi ainda além, apontando o neto do magnata e atual proprietário da famosa coleção de "playboy do jet-set", com supostamente nenhum interesse real pela arte ou conhecimento sobre a mesma. Um prato cheio para a mídia na época do lançamento e motivo até hoje de um certo mal-estar quando se ouve o sobrenome Flick, apesar de todas as pérolas de sua coleção expostas em Berlim.
Espaço singular
Para além da polêmica que envolve a origem do dinheiro que financia as obras com as quais o visitante se depara no Museu Hamburger Bahnhof, os mais de 10 mil metros quadrados de arte acabam sendo um must para quem visita a capital alemã. Cenário recente, por exemplo, das imperdíveis esculturas de luz de Anthony McCall ou da série Cosmococa, de Hélio Oiticica, numa parceria com o Festival de Cinema de Berlim, o museu localizado nas proximidades da estação central da cidade é um endereço certo para quem se interessa por arte contemporânea. Uma retrospectiva do artista Martin Kieppenberger, morto em 1997 e que faria 60 anos em 2013, é um dos atuais destaques.
É bem possível inclusive que, ao visitar o local, o observador presencie mostras que posteriormente venham a se tornar antológicas para a história da arte. Entre 1998 e 1999, por exemplo, quem contou com o acaso tendo sido um entre os 350 mil visitantes da polêmica mostra Sensation – Arte Jovem Britânica da Coleção Saatchi, teve a oportunidade de ver de perto um Damien Hirst ainda não totalmente envolto nos holofotes peculiares ao mundo e ao mercado da arte. Algo que hoje parece até inverossímil.