Ilusão do movimento na palma da mão
16 de agosto de 2005Ele geralmente é encontrado nas prateleiras de brinquedos das grandes lojas de departamento ou distribuído gratuita e mundanamente em campanhas publicitárias. Embora seja, na realidade, um filho adotivo do cinema. Em pleno século 19, o inglês John Barnes Linnett se deu ao trabalho de patentear o que dizia ser sua invenção: o flip book ou livro animado. Registrado com o seguinte adendo: “Melhoramentos nos meios de produzir ilusões óticas".
O flip book é um livro que, por um curto espaço de tempo, se transforma em filme. Uma seqüência de imagens capaz de narrar uma história. Um objeto que, quando manipulado, tem algo a dizer. E que já recebeu ao longo da história uma série de nomes: cinèma de poche (cinema de bolso), hand cinema (cinema de mão), cinematógrafo ou simplesmente livro animado. Um objeto que fica a meio caminho entre o cinema e o livro e possui um potencial narrativo sui generis, graças à ilusão de ótica que proporciona.
Tansição entre livro e cinema
A peculiaridade do flip book está, entre outros detalhes, na “virada de página” – um procedimento praticamente ignorado no processo de leitura “normal”, mas que na versão “animada” do livro ganha uma importância primordial. A passagem de uma imagem estática (livro) para imagens em movimento (cinema) faz do flip book uma mídia única e transitória. E um meio que sobrevive da ilusão do movimento. Na palma da mão do espectador.
Este, por sua vez, é ativo e completamente autônomo, determinando sem influências ou normas a velocidade com que o livro é visto. Pois é possível passar as páginas com calma, rapidez, desprezo, muita ou pouca delicadeza. Além disso, o flip book, ao contrário do cinema, permite ao observador/espectador determinar ele próprio a cronologia de recepção da obra: do começo ao fim ou de trás para frente.
“Os livros animados”, diz Christoph Benjamin Schulz, curador da exposição em Düsseldorf, “são brinquedos infantis na forma de lidar e objetos filosóficos no que se refere à capacidade de expressão artística."
Além de serem relativamente universais, por não dependerem, via de regra, do idioma em que foram escritos ou desenhados. Uma exceção é Leggere, do italiano Giovanno Anselmo, o único flip book traduzido do qual se tem conhecimento. A razão é simples: por jogar visualmente com o verbo "ler", não faria sentido “lê-lo” sem compreender o sentido da palavra.
Tridimensionais, interativos, colados, encadernados...
A própria forma do flip book pode também variar extremamente: há os especiais para canhotos, os que só devem ser lidos/vistos de trás para frente ou vice-versa. Há os impressos em frente em verso e até mesmo os tridimensionais. Muitos não são nem mesmo mudos, tendo em seu conteúdo referências diretas aos ruídos provocados pelo passar das folhas. Sem contar os interativos, folheados com a ajuda do mouse.
Os livros animados podem ser colados, grampeados, parafusados ou simplesmente encadernados. Trazendo conteúdos da mesma forma diversos: políticos, eróticos, reais e surreais, conceituais e pragmáticos. No caso de serem expostos ao público, a liberdade também é grande: podem ser simplesmente colocados sobre uma mesa ou dependurados por uma fina corda presa ao teto.
Arte contemporânea e flip book
A exposição na Kunsthalle de Düsseldorf tem o mérito de cobrir uma lacuna entre a história do cinema e a arte contemporânea, ao apresentar o livro animado não só como a grande ilusão de movimento no século 19, mas também – e principalmente – como forma atualíssima de expressão artística. A mostra traz livros animados históricos, contemporâneos e até minifilmes experimentais. O que deixa claro, por exemplo, que até este gênero esquecido tem seu "cinema de autor".
Um dos destaques é a produção de flip books nos anos 60 e 70, um dos momentos de ápice do gênero, propiciado pelas tendências de auto-referência da arte em geral. Em meados da década de 70, por exemplo, o artista norte-americano George Griffin fez do flip book o tema de dois desenhos animados.
Num deles, Trickfilm 3 (1973), o espectador acompanha como desenhos feitos com extrema rapidez vão se "transformando" em filme. A ilusão do cinema é, neste caso, desconstruída com a ajuda do livro, uma vez que o espectador “aprende” como se constrói uma seqüência de animação.
De Warhol a Almodóvar
Ao todo, a exposição em Düsseldorf traz flip books de mais de 170 autores. Entre estes estão curiosidades históricas, como o Underground Movie Flip Book de Andy Warhol intitulado Kiss, que divide o mesmo livro com Buzzards over Bagdad, de Jack Smith. Ambos datados de “aproximadamente 1966” e de propriedade de um colecionador de Hannover. Outra raridade são os poucos segundos de Talk to Her, de Pedro Almodóvar, um minifilme de 2002.
Entre os artistas contemporâneos que tematizam ou utilizam o livro animado em suas obras, há com freqüência associações a outras mídias como o cinema, o vídeo ou a fotografia. E vários que procuram, através da inclusão do flip book, refletir sobre o processo de construção de uma imagem em movimento.
Historicamente, alguns movimentos demonstraram uma predileção especial pelos flip books. No caso do Fluxus, por exemplo, mais em função de uma simpatia pela efemeridade das imagens veiculadas do que pela estrutura dos livros em si. E principalmente pela proximidade do gênero da estética infantil e do lúdico, acrescida à participação ativa do espectador – posturas também adotadas por Georg Maciunas, ideólogo do grupo.
Leia mais: Reflexão sobre o tempo; "Final Cut" brasileiro; Desmascarando a "família modelo"; Arcaico e charmoso
Reflexão sobre o tempo
Num dos blocos da mostra – Daumenkino als Daumenkino (a nomenclatura em alemão para o livro animado, que significa literalmente “cinema de polegar”) – várias obras refletem sobre o passar do tempo, como Eine Gedenk-Minute für die Zeit, um flip book formado por simples registros de horas, minutos e segundos, que, ao ser folheado, dá a idéia do tempo que passa devagar ou rapidamente, dependendo da velocidade de quem o tem em mãos.
“Final Cut” brasileiro
Embora a grande maioria das obras expostas possa ser folheada por quem visita a exposição, algumas ficam, por um motivo ou outro, guardadas a sete chaves. Uma delas é Final Cut, do brasileiro Laércio Redondo. Um livro animado que “apavora” o leitor, por ter estiletes nas bordas de suas pequenas páginas.
“Flip this book at your own risk” (É seu o risco de folhear este livro), estampa a capa da obra que ganhou, em fevereiro último, o prêmio máximo do Festival do Livro Animado, realizado em Stuttgart. Por via das dúvidas, em Düsseldorf, Final Cut não fica ao alcance do visitante.
Laércio Redondo, paranaense radicado em Estocolmo, e o sueco Birger Lipinski levaram para casa o “Polegar de Ouro” – premiação máxima do festival – do qual participaram flip books nas categorias animação, lúdico, documental e experimental.
O trabalho dos dois artistas, assinalou o diário Süddeutsche Zeitung na época, "pode deixar marcas na pele": o livro animado de Redondo e Lipinski surge como uma ameaça concreta para explicitar de forma literalmente cortante questões relacionadas ao poder da mídia e à manipulação de imagens.
Desmascarando a "família modelo"
Outro destaque é o trabalho do argentino Miguel Rothschild, que faz seus flip books crescerem tanto até tomarem o espaço, através da instalação Família Modelo. Trauma de um Artista Sozinho (2000/2003).
Dividida em nove módulos, a obra narra através de incontáveis flip books e altas doses de sarcasmo as peripécias do alter ego do artista, querendo livrar sua ex-namorada do pesadelo da vida “ideal e perfeita” em família.
Arcaico e charmoso
A peculiaridade dos flip books, conclui-se depois de tantas páginas viradas em Düsseldorf, é o fato de que esses livros são um espaço dedicado à memória, pois só existem graças à lembrança do que acabou de acontecer (da página que se acabou de virar).
Arcaico e charmoso, ou aliás, charmoso exatamente por ser aparentemente arcaico, o livro animado, pelo que parece, vai resistir por muito tempo, virando ainda páginas e páginas da história do cinema, da poesia visual e das artes plásticas. Muitos flip books, porém, acabam fadados ao esquecimento, por não serem considerados material de arquivo nem de bibliotecas, nem de videotecas.