Receio com governo Bolsonaro trava venda de mísseis dos EUA
8 de agosto de 2022Um pedido militar do Brasil para a compra de mísseis antitanque Javelin no valor de até 100 milhões de dólares (R$ 511 milhões) está parado em Washington há meses devido às preocupações de legisladores dos Estados Unidos quanto ao presidente Jair Bolsonaro, incluindo seus ataques ao sistema eleitoral brasileiro, disseram à agência de notícias Reuters várias fontes americanas.
O processo para adquirir cerca de 220 mísseis foi iniciado quando o ex-presidente Donald Trump, aliado de Bolsonaro, ainda estava na Casa Branca. O Departamento de Estado americano aprovou a proposta no final do ano passado, apesar das objeções de algumas autoridades americanas de baixo escalão, segundo duas pessoas familiarizadas com o assunto.
Mas, desde então, o acordo confidencial, que não foi divulgado anteriormente, ficou emperrado em um limbo processual em meio a preocupações crescentes entre os parlamentares democratas com os frequentes questionamentos de Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas e a segurança da eleição em outubro no Brasil, disseram as fontes.
O pedido do Brasil pelos mísseis fabricados nos EUA, que ficaram ainda mais famosos por seu uso efetivo pelas forças ucranianas contra blindados russos, acabou travado em um esforço liderado por democratas para enviar uma mensagem a Bolsonaro e aos militares brasileiros. "Está sendo deixado de lado no Capitólio e não vai a lugar nenhum tão cedo" por conta das incertezas sobre Bolsonaro, disse uma fonte que acompanha as negociações.
O entrave sublinha o impacto da retórica do presidente brasileiro e oferece um vislumbre de como o Brasil poderia ficar mais isolado internacionalmente se Bolsonaro seguisse o exemplo de Trump e se recusasse a aceitar uma derrota eleitoral para seu principal rival, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que aparece em primeiro lugar nas pesquisas.
EUA pedem respeito à democracia
O governo do presidente Joe Biden, ainda em alerta pela invasão do Capitólio por apoiadores de Trump em 6 de janeiro de 2021, ficou incomodado com os comentários de Bolsonaro sobre a eleição e enviados americanos a Brasília pediram cautela.
Em julho, em viagem ao Brasil, o secretário de Defesa americano, Lloyd Austin, pediu respeito à democracia em uma reunião com ministros de todo o continente. Antes disso, no ano passado, em uma visita ao Brasil, o diretor da CIA, William Burns, disse a assessores de Bolsonaro que o presidente deveria parar de minar a confiança no processo eleitoral brasileiro.
Bolsonaro os ignorou. Em vez disso, continuou a questionar a credibilidade do sistema de votação eletrônica e seguiu alegando fraude nas eleições, sem apresentar provas.
Brasil precisa dos mísseis?
O potencial papel pós-eleitoral das Forças Armadas do Brasil também é uma questão em aberto. Bolsonaro pediu que os militares realizem sua própria contagem paralela de votos, dizendo que "o Exército está do nosso lado".
Washington também está preocupado com o retrocesso ambiental sob o governo Bolsonaro,bem como com seu relacionamento amigável com o presidente russo, Vladimir Putin. O presidente brasileiro se recusou a condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Fabricado pelas gigantes da defesa Lockheed Martin Corp e Raytheon Technologies Corp, o Javelin tornou-se uma das armas mais conhecidas do mundo devido ao seu sucesso contra tanques russos na guerra da Ucrânia.
O Brasil não enfrenta ameaças semelhantes, levando a questionamentos sobre por que precisaria de tal poder de fogo, disseram fontes. As Forças Armadas do Brasil se concentram principalmente na segurança de suas fronteiras, que estão entre as mais longas do mundo, e missões internacionais de paz.
"O Brasil não precisa deles", disse um ex-assessor do Congresso americano que tem familiaridade com a questão das armas.
Outra fonte afirmou que o apoio do Departamento de Estado à venda dos mísseis mostrou que os EUA queriam satisfazer o Brasil para ajudar a melhorar as relações com um dos mais importantes aliados militares de Washington na região.
O Palácio do Planalto encaminhou um pedido de comentários da Reuters sobre o tema ao Ministério da Defesa, que não respondeu a uma lista de perguntas. O Departamento de Estado americano tampouco respondeu a um pedido de comentários a respeito.
Um pedido, dois governos
O pedido de compra dos Javelins ocorreu em 2020, em um momento de aquecimento dos laços entre os Estados Unidos e o Brasil sob Trump e Bolsonaro. Em 2019, Trump designou o Brasil como um aliado de primeiro nível dos EUA fora da Otan, permitindo maior acesso a armas fabricadas por empresas americanas.
O acordo atravessou a era Trump e foi herdado por Biden, menos amigável com Bolsonaro do que seu antecessor republicano. Ainda assim, o Departamento de Estado de Biden deu um aceno preliminar positivo ao acordo após o que uma pessoa familiarizada com o assunto descreveu como apenas discussões superficiais, ignorando as preocupações de diplomatas dos EUA no Brasil e de autoridades de baixo escalão em Washington.
"Há aqueles dentro dos níveis de trabalho do Departamento de Estado que expressaram ressalvas a respeito desta venda, dadas as ações e a retórica de Bolsonaro e a certas ações dos serviços militares e de segurança do Brasil no passado", disse uma fonte do governo dos EUA. "Tais preocupações não são compartilhadas entre autoridades do Departamento de Defesa nem pela liderança do Departamento de Estado."
O Departamento de Estado então enviou a proposta de venda para uma revisão "informal" pelos dois democratas que presidem as comissões de Relações Exteriores do Congresso e os dois principais membros republicanos dos colegiados. Fontes do Congresso dizem que a questão não avançou devido às preocupações dos legisladores, incluindo o senador Bob Menendez e o deputado Gregory Meeks, colegas democratas de Biden.
Eles fizeram várias perguntas ao Departamento de Estado dos EUA, desde o histórico de direitos humanos de Bolsonaro até se o Brasil precisa de tais armas, de acordo com uma fonte do Congresso, sugerindo que querem pelo menos adiar a venda até depois das eleições de outubro no Brasil.
"Não comentamos casos de vendas sob revisão atual", disse um porta-voz da comissão, acrescentando que "o presidente Meeks leva em consideração uma série de pontos ao revisar tais transações, como a ampla gama de dinâmicas diplomáticas e de segurança, bem como preocupações com direitos humanos".
Por outro lado, não há indícios de que os dois republicanos que também analisam o pedido brasileiro, o senador Jim Risch e o deputado Michael McCaul, tenham expressado quaisquer reservas, disseram fontes.
Em resposta aos parlamentares, o Departamento de Estado reconheceu que os mísseis Javelin não protegem contra qualquer ameaça específica que o Brasil enfrenta, disse uma autoridade dos EUA. Mas o departamento argumentou que a tentativa do Brasil de atualizar sua capacidade antiblindados é legítima e que o país busca ter um número razoável de mísseis, acrescentou a autoridade.
Grandes obstáculos
Apesar das tensões entre Biden e Bolsonaro, Washington permaneceu aberta à venda de armas para o governo brasileiro. "A visão é que o Brasil tem o direito de adquirir equipamentos militares como achar melhor e de acordo com nossas leis", disse um alto funcionário do governo Biden à Reuters.
Ainda assim, mesmo que a venda passe para a próxima fase – uma revisão completa do Congresso – ainda enfrentará enormes obstáculos.
O senador democrata Tim Kaine, que preside o subcomitê relativo aos países ocidentais, disse que gostaria de examinar de perto qualquer venda. Mas, segundo disse à Reuters, vender armas para o Brasil "não é algo que eu sentiria imediatamente que deveríamos fazer".
Além disso, a demanda por Javelins disparou desde o início da guerra na Ucrânia. Dessa forma, mesmo que o acordo seja aprovado, pode levar anos para que Brasil receba os mísseis devido à lista de pedidos, com prioridade para outros parceiros dos EUA.
Se a compra for negada, fontes dizem que o Brasil teria outras opções – principalmente o HJ-12, a versão chinesa mais barata do Javelin.
le/bl (Reuters)