Internacionalização da Amazônia: entenda o debate
3 de outubro de 2019As discussões sobre uma eventual internacionalização da Amazônia ressurgiram em meio às tensões diplomáticas entre os governos do Brasil e da França. Durante o ápice do aumento das queimadas na região amazônica, o presidente francês, Emmanuel Macron, sugeriu na cúpula do G7 conferir um status internacional à Floresta Amazônica, caso os líderes da região não tomassem medidas para protegê-la.
Em resposta, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, afirmou em seu primeiro discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, ser "uma falácia dizer que a Amazônia é patrimônio da humanidade”. "Quero reafirmar minha posição de que qualquer iniciativa de ajuda ou apoio à preservação da Floresta Amazônica, ou de outros biomas, deve ser tratada em pleno respeito à soberania brasileira”, afirmou.
Especialistas em Direito Penal Internacional, Relações Internacionais e Ciência Política ouvidos pela DW concordam que um processo de internacionalização da Amazônia que desrespeite a soberania brasileira e envolva intervenção externa é juridicamente inviável.
"Eu não vejo a menor chance num futuro previsível de que alguma proposta de internacionalização da Amazônia tenha a chance de ser viável”, afirma Eduardo Viola, professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
No entanto, outros mecanismos internacionais, tanto jurídicos quanto econômicos, permitem responsabilizar o governo brasileiro por omissões na proteção do meio ambiente que prejudiquem a população.
O que dizem as leis internacionais
As responsabilidades internacionais do Brasil em relação à Amazônia estão no âmbito dos compromissos assumidos em tratados da ONU sobre o aquecimento global, como o Acordo de Paris. Nesses acordos, o governo brasileiro se compromete a combater o desmatamento e a adotar outras medidas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. Nenhum desses tratados prevê a possibilidade de qualquer tipo de intervenção na Amazônia ou de tomada desse território caso o Brasil não cumpra com as suas obrigações.
"Qualquer hipótese de intervenção sem a devida autorização dos órgãos competentes, em especial, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, é crime de agressão. Em teoria, conferir um status internacional não significa autorizar que outro país intervenha na soberania nacional. Isso não existe", explica Sylvia Steiner, juíza brasileira que já atuou no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, entre 2003 e 2016.
Longe de uma intervenção, conferir um status internacional a um território considerado bem comum da humanidade impõe obrigações aos demais Estados, que devem ajudar a proteger e conservar este patrimônio. "Não cabe a nenhum país e nem à comunidade internacional o direito de intervir na gestão desse bem, ou pior ainda, invadir esse território para a proteção desse bem”, acrescenta.
Segundo Steier, num quadro de internacionalização da Amazônia, os Estados estabeleceriam acordos para a preservação da floresta ou até a exploração sustentável, com contrapartidas do Brasil, mas nunca uma intervenção.
"Uma gestão compartilhada teria que ser firmada de comum acordo e com boa fé num regime de cooperação internacional. E o Brasil aceitaria se quisesse. Cooperação imposta não existe e seria uma quebra de soberania”, explica.
Ecocídio
No final de agosto, um grupo de juristas brasileiros preparou uma denúncia contra Bolsonaro por ecocício – a destruição em larga escala do meio ambiente – para ser apresentada ao TPI. Os advogados justificaram a ação devido à política ambiental do governo e um "posicionamento claro” do presidente contra as leis ambientais.
Steiner, no entanto, pondera que é impossível abrir uma investigação desse tipo contra o Brasil na Corte em Haia. O Estatuto de Roma, que estabeleceu o TPI e descreve os crimes que podem ser julgados pelo tribunal, não prevê o crime de ecocídio e nem de qualquer outro crime contra o meio ambiente.
"A única previsão que existe é de crime de guerra que cause dano excessivo ou desnecessário ao meio ambiente. Fora isso, não existe a menor possibilidade. É um tiro na água”, disse em entrevista à DW.
Segundo Mauricio Santoro, cientista político e professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a possibilidade de considerar a destruição da Amazônia como algo análogo a um crime contra a humanidade está ganhando espaço nos debates internacionais.
"Existe a tendência de aumentar o escopo desses crimes de guerra. Comandantes do Estado Islâmico (EI), por exemplo, foram enquadrados por crimes de destruição cultural por causa de depredações nos antigos templos romanos da Síria. Isso foi considerado pela primeira vez um crime de guerra”, diz.
Ainda não houve nenhum caso em que algum tipo de devastação ambiental fosse enquadrado nessas condições. "Acho improvável que isso aconteça em relação à Amazônia, mas o tema entrou em discussão, pelo menos no campo teórico”, afirma.
Crime contra a humanidade?
Se as violações perpetradas contra o meio ambiente têm a finalidade específica de eliminar um determinado grupo, podem ser consideradas um crime de genocídio. Ações como envenenamento de lençóis freáticos ou incêndios de alta escala que são empregadas de forma generalizada e sistemática para causar mortes humanas também poderiam ser considerados.
"Se o dano ao meio ambiente é um instrumento para causar um crime contra a humanidade, aí sim pode ser considerado um crime de guerra”, explica Steiner.
"Qualquer vítima de crime previsto no Estatuto de Roma tem de ser estritamente um ser humano e o causador é um indivíduo”, acrescenta a juíza brasileira.
Outras ações possíveis
Steiner observa que se as queimadas continuarem a aumentar e houver prova de omissão por parte do governo brasileiro, medidas cautelares podem ser apresentadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Uma opinião consultiva mandatória, expedida recentemente pela Corte com sede em San José, na Costa Rica, estabelece a obrigação dos Estados membros de preservar o meio ambiente para a proteção dos direitos fundamentais das pessoas e das futuras gerações.
"Isso pode sim gerar, inclusive por medida cautelar, determinações da Corte submetendo o Brasil ao pagamento de multas e até à condenação se continuar essa política de absoluto descaso com a proteção do meio ambiente”, diz Steiner. "Disso não tenho dúvida e as ONGs precisam saber que políticas de governo devem ser submetidas à CIDH. Nós estamos aqui tentando combater uma política nefasta de governo. O TPI julga apenas a responsabilidade penal de indivíduos.”
Entre as exigências que podem ser estabelecidas pela CIDH estão a recuperação da floresta e a liberação de verbas e mecanismos para a proteção das populações que vivem e dependem da Floresta Amazônica. Se o governo se recusar a cumprir as medidas, caberia à Organização dos Estados Americanos (OEA) decidir as punições cabíveis, que podem ir desde embargo e censura pública até o desligamento do Estado Membro da organização, mas essa medida extrema nunca foi tomada.
"Ao ratificar a Convenção da OEA, se o Estado Membro não cumpre as suas obrigações, comete, assim, um ilícito internacional”, descreve Steiner.
Outra vulnerabilidade do Brasil no contexto internacional são as pressões econômicas. "A possibilidade de sanções econômicas e de boicotes comerciais ao Brasil pode prejudicar o país. O agronegócio brasileiro depende de certificação internacional para acessar os mercados globais e não pode produzir alimentos com base no desmatamento ilegal”, observa Santoro.
"Vai haver pressão redobrada tanto por parte de empresas que compram produtos brasileiros como também por fundos de investimentos. As empresas que investem no Brasil estarão mais cautelosas e eventualmente vão vender ações de empresas brasileiras que estejam envolvidas com crimes ambientaios. Tem muitos lados pelos quais o Brasil pode ser afetado por causa da política ambiental do governo Bolsonaro”, finaliza.
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